quinta-feira, 27 de março de 2014

João Ribas - A Última Entrevista

Em jeito de homenagem. O Ribas tinha uma voz para ser ouvida e quem gosta da música dele, aprecia essa partilha. De histórias, de saber, da memória apurada desta eterna referência punk dos Censurados, Tara Perdida e Kú de Judas. O diálogo abaixo aconteceu no passado dia 17 de Dezembro de 2013 no Popular Alvalade, espaço de Lisboa que representa bem o espírito que floresceu naquele bairro. Com parte originalmente publicada na revista LOUD! #154 (Quadro de Honra), reproduz-se agora esta conversa na totalidade e sem edição. Em honra ao João Ribas que, entre idas ao hospital – apesar de irradiar sempre boa disposição – arranjou um bocadinho para relembrar comigo os tempos do álbum «Censurados» de 1990. E não só.




Ainda te lembras bem do início dos Censurados? Foi uma boa altura desta tua vida com bandas?
Foi. É mesmo capaz de ter sido a mais importante. Foi o maior degrau que subi na minha carreira, vá lá, até à altura. E, se calhar, até hoje. Estava nos Kú de Judas que nunca chegaram a gravar... o que anda por aí, é ao vivo. Depois fui para a Alemanha e, quando voltei, vinha com ideias diferentes de como fazer as coisas. Comecei por falar com o Paulo Ampola, que era baixista dos Crise Total, fizemos umas músicas e falaram-me do Samuel que também parava aqui no Jardim dos Coruchéus. Fui ter com ele, aceitou logo e, nessa fase inicial, o guitarrista era o Tiago, um amigo nosso. Aí, começámos a ensaiar, praticamente todos os dias, na casa da minha mãe e, de um dia para o outro, virámos músicos. Em vez de estarmos no jardim a beber bejecas, íamos para o meu quarto beber as bejecas e tocávamos! [risos]

Chegaram a tocar no RRV com essa primeira formação dos Censurados mas, até gravarem o álbum, houve mais fases. Quais foram os primeiros temas a ficarem prontos?
As primeiras malhas foram feitas ainda com o João Pedro Almendra. Ele estava nos Peste & Sida mas, na altura, tinha saído. Como eu sempre tive aquela fisgada do João Pedro, convidei-o para cantar connosco e os «Srs. Políticos» e «É Difícil» ainda são letras dele. Ainda fez três ou quatro ensaios mas, depois, os Peste estavam a gravar e ele teve de voltar para eles. Mais uma vez fiquei eu na voz; já nos Kú de Judas tinha acontecido isso com ele – saiu para os Peste & Sida e fiquei eu a cantar nos Kú de Judas.

Portanto, a tua ideia inicial nunca foi a de ser vocalista?
Não. Eu sou vocalista, praticamente, por causa do Autista. [risos] Não desafinava e, como era eu que fazia as músicas, sabia cantar tudo e tornava-se mais fácil. Ele saía, mas ficava lá eu e as coisas não acabavam.

Em Censurados sempre tocaste guitarra, apesar de um vídeo ou outro em que apareces sem ela.
Sim, em estúdio, sempre toquei guitarra. Só em Tara Perdida, a partir de 2002, quando chamámos o Ganso para a banda, é que decidi dedicar-me à voz a 100%.

Mas voltando aquela fase em que regressaste da Alemanha. Depois, não demorou muito tempo até terem material pronto para o álbum dos Censurados...
Sim, mas atenção que quando vim da Alemanha, eu não queria acabar com os Kú de Judas. Eles entretanto acabaram e eu fiz outro projecto. A ideia que trazia era a de fazer uma banda mais consistente, com mais trabalho. Kú de Judas não deu e arranquei mais a sério para Censurados.


Entretanto, mais à frente, junta-se a ti e ao Samuel, o Orlando Cohen e o Fred Valsassina.
Pois, isto porque o Tiago era um bocado tresloucado, não estava assim muito na nossa onda. Ainda chegámos a tocar com o Paulo, mas ele tinha um trabalho que não lhe permitia estar numa banda e, então aí, é que falámos com o Fred que também parava aqui nos Coruchéus. Tínhamo-lo visto a tocar baixo, tocava blues com o Pedro Abreu, tudo ali na batatinha e convidámo-lo. O Orlando surgiu porque saiu dos Peste & Sida. Precisávamos de um guitarrista com alguma urgência e integrou-se rapidamente connosco, até porque estava dentro da mesma onda. O primeiro concerto desta formação foi a 2 de Setembro de 1989. Mas Censurados começou em 1988, no Verão.

Há mais de 25 anos. Quais são as grandes diferenças que encontras nas bandas de então e do tempo presente?
Hoje em dia, as bandas preocupam-se mais em fazer as coisas bem. Mostrar ao público bom trabalho. Dantes, havia muito a onda do bora, 1, 2, 3, 4 e tá a andar de mota! Não quer dizer que não fosse fixe, o espírito era diferente, era assim... Penso que, a esse nível, as bandas em Portugal evoluíram bastante. Começaram a preocupar-se mais com os ensaios – o ensaio é fundamental. O pessoal às vezes cagava um bocadinho nisso, havia aquela pressão de ensaiar uma vez por semana... o pessoal queria era dar concertos! Hoje há outra preocupação a todos os níveis, desde as gravações à promoção; antigamente era tudo um bocado ao molho. Era a onda da adolescência, a rebeldia a sair toda para fora e, mesmo na pós-adolescência, a loucura ainda continuava!

Olhando hoje para os três discos, é do «Censurados» que continuas a gostar mais?
É aquele pelo qual tenho mais carinho. Antes de mais, foi o meu primeiro disco. Para eles também foi e, por isso mesmo, toca-me particularmente. É aquele que tem mais de mim, já que comecei por fazer as músicas. Com a entrada do Orlando e do Fred, o trabalho passou a ser feito de outra forma e o «Confusão» já traz outros elementos e revela mais trabalho. E o «Sopa», para mim, foi um bocado desilusão, mesmo a nível de produção. Não o teria feito daquela forma, se fosse hoje. Esse álbum é um pouco diferente. Já tem muitas coisas de heavy metal à mistura, não quer dizer que isso seja mau porque sempre tivemos uma costela metal, seja pelo Samuel, seja porque eu sempre gostei de algumas coisas. O Fred também trazia algumas cenas assim. Nessa altura, o Orlando ouvia Metallica! O «Sopa» ficou diferente dos outros, fomos procurar outras coisas, o que eu acho bom, para não estarmos sempre a fazer o mesmo. OK, tocamos punk rock, mas os músicos não querem estar sempre a fazer a mesma coisa... São muitas horas que estão ali, penso que há um grande trabalho dos músicos em si, mas foi quando percebemos que as ondas musicais de cada um estavam a ficar bastante diferentes.

Foi o princípio do fim?
Sim, talvez tenha sido. Ainda fizemos em '93 uma tournée com o «Sopa» e foi excelente. Demos inúmeros concertos; apesar de tudo, foi uma altura muito boa para a banda.

Mas quais considerarias os anos de ouro dos Censurados?
1991 e '92. Quando saiu o «Confusão» estava toda a gente interessada na banda. Lembro-me que fizemos o lançamento do álbum na Zona+. Como tínhamos feito a tour com os Xutos, ficámos mais conhecidos a nível nacional, as pessoas que nos viram nos Xutos, pelos vistos, gostaram e, no ano seguinte fomos quase aos mesmos sítios onde tínhamos ido com eles, mas já em nome próprio.

Dessa altura inicial, de que histórias marcantes ainda te lembras? Aqueles episódios próprios de uma banda a emergir e que ainda te suscitam um sorriso hoje.
Há bastantes. Com Censurados houve vários, na estrada, por exemplo... Lembro-me da primeira vez que fomos a França, fomos de carrinha ao festival Printemps de Bourges. Os Ramones tocavam lá dois dias depois de nós, mas tivemos de ir para Paris e não vi Ramones nessa altura. Já tinha visto em 1981, felizmente, foi fixe ainda vê-los em puto. [risos] Foi em Cascais, lembro-me que fizeram dois dias, 24 e 25 de Maio, e eu vi-os a 25. Mas voltando a França, tivemos de fazer Paris-Lisboa na mesma carrinha, bazámos numa segunda-feira e tínhamos concerto cá na quarta-feira. A dormir na carrinha, todos rotos, chegámos mesmo a tempo do soundcheck. Fazia anos nesse dia e ainda fomos à Feira Popular jantar e demos um grande concerto! Era numa tenda de circo da alameda da cidade universitária, aquilo estava cheio, esquecemos o cansaço e foi uma cena memorável. A minha mãe foi de Mini com a mãe do Fred! Lembro-me de as ver com dois seguranças ao lado e elas – “nós não precisamos!” [risos] A minha mãe foi a muitos. Ainda chegou a ir a concertos de Tara Perdida.

Atrás disseste que ensaiavas em casa. Sempre tiveste o apoio da família?
A minha mãe é a pessoa mais importante da minha carreira musical. Foi ela que me pôs nisto, praticamente. Deu-me todo o espaço para fazer isto. Não era qualquer tipo de entrave, antes pelo contrário. Ela dizia mesmo ao pessoal – “vocês têm de ensaiar porque, sem ensaios, ninguém faz nada”. Às vezes comentava que gostava muito da melodia daquela... “depois, estragam tudo”. Claro, era quando vinha o barulho! [risos] Participava bastante, mas deu-me todo o apoio por abrir as portas para poder tocar lá em casa. Às vezes, não tinha trabalho, era ela que me ajudava e isso facilitou a minha vida quando foi preciso.

A ela, deves bastante?
Tudo. Posso mesmo dizê-lo. E, quando digo tudo, é porque consegui ser aquilo que sempre sonhei. Ela deu-me isso. O resto, claro, é o fruto desse trabalho que ela impulsionou em mim. Eu acho que havia qualquer coisinha na minha mãe, que lhe dizia que não havia nada a fazer. [risos] Há aqueles pais que entram naquela – “ah, agora tens de ir trabalhar” – mas ela viu que eu sempre trabalhei em teatro, era técnico de teatro, fazia som e luz, fazia digressões de teatro... Aliás, se não fosse músico, estou convencido que hoje andaria nessa vida, até porque era uma profissão de que eu gostava bastante. Cheguei a ser convidado para o Teatro Aberto, como técnico de luz definitivo, mas era incompatível fazer as duas coisas. Se tinha concerto e peça no mesmo dia, não podia estar nos dois sítios e tive de optar. Uma vez, num concerto dos N.A.M., foram-me buscar à Comuna a toda a velocidade, fomos quase a 200 para o Fogueteiro e acabámos por não dar o concerto! Até 1990 ainda fiz as duas coisas, mas quando chegou a tournée com os Xutos & Pontapés, tive mesmo de tomar uma decisão – ou teatro, ou música.

E a história do «Não», quando a tocaram pela primeira vez num concerto no Rock Rendez-Vous. Consta que a letra nasceu aí mesmo, espontânea!
Foi ali mesmo, no palco. A música não tinha letra, só dizia “não”... tipo, tá-ne-ná-ná-não!, tá-ne-ná-ná-não! A música tinha a estrutura feita, mas lembro-me de perguntar ao Orlando se a íamos mesmo tocar... E ele – “claro!”, “epá, mas isso não tem letra.”, “desenrasca-te!” E eu calei-me. 'Bora!. Foi a partir do que ouvi gravado no concerto do RRV, porque eles gravavam os espectáculos todos, é que fiz a letra do «Não». Coisas como não consigo compreender o que é que eu ando p'rá aqui a fazer saíram-me no momento. Há para lá coisas que não aproveitei como palavras tipo feisy, palavras que não existem... mas estava afinadinho e seguiu.

Letras que, é incrível, se mantêm hoje actuais, desde a «Angústia» aos «Srs. Políticos». Isto foi no tempo do cavaquismo e...
Olha, nem sei, porque eu ligava tanto a isso, que nem sei quem era o parvalhão que lá 'tava!

Seja como for, está tudo igual. [risos] Concordas que são letras que podiam servir para canções de hoje?
Sim, não és o único, muita gente diz isso. Às vezes, quando está a passar Censurados em algum lado, há pessoal que vem ter comigo a dizer-me que esta ou aquela música é intemporal. Há coisas que, admito, têm vinte e tal anos e estão actualíssimas. Podiam ter sido feitas hoje.


No caso do «Animais», por exemplo, ainda sentes que toda a gente olha p'ra mim, parece que me querem comer?...
Já não olham tanto. [risos] Mas ainda olham. Assim sempre desconfiados... este povo é muito desconfiado. Já reparei que, se estiver de pijama – num hospital, por exemplo – a pessoa está a falar comigo, está tudo bem. Quando me começo a vestir, a reacção muda! Depois vêem-me a espetar o cabelo, a pôr-me todo de preto e ficam naquela – “mas quem é este gajo?!” Há quem veja duas pessoas diferentes ali. Na altura dos «Animais» era mesmo a onda de punkalhada e tal. Desde puto que uso o cabelo espetado, quem usava moicano era o có-co-ro-có-có, claro que o pessoal nem ligava, estávamo-nos bem era a cagar para isso. Era tipo – quero é que te vás foder, eu ando como eu quiser. É um dos temas marcantes do álbum, sem dúvida. Mas também o é, por exemplo, a «Guerra Colonial». Há refrões que me tocam particularmente, de todas as cenas que já gravei. Essa é uma das malhas que me dá uma sensação, pura e simplesmente, espectacular. Quando começo a cantar aquele refrão, arrepio-me sempre. Assim como no caso dos Tara Perdida, por exemplo o «Pernas Pr'ó Ar» [n.r.: começa a cantar a música] – oh, estou-me a arrepiar agora, é genuíno!

Sempre foi algo importante na construção das tuas músicas, logo nestes temas do «Censurados» – ter ali uma melodia marcante e chamativa?
Sim, sim. Eu sempre gostei muito de punk rock cru, mas também sempre gostei das vozes a puxar mais para o melódico. Sempre ouvi GBH, Discharge, The Exploited, mas também bandas como Buzzcocks ou os Dickies, que são cenas punk, mas em que há outras harmonias na voz. Já em Kú de Judas, apesar de as músicas serem rápidas, eu puxava muito por essa melodia. Depois, nos Censurados, claro, os refrões eram essenciais. É o que bate mais.

E Ramones? Há pouco já lhes aludiste, mas podes dizer que são a tua principal influência?
Pois, Ramones é outra história. É o que me fez... practicamente. O que me fez ser músico, foram os Ramones. Não era só nos Estados Unidos que nasciam bandas em cada cidade onde eles iam tocar, aqui também se pensava – espera aí, eu também posso ter uma banda! Aqui também aconteceu, só para veres.

Por todas essas razões que falámos, achas que o álbum «Censurados» envelheceu bem até aos dias de hoje?
Eu sou um bocado suspeito para avaliar isso, mas acho que sim. E a prova é que esse disco ainda se vende e marcou a vida de muita gente. Às vezes lembro-me de histórias que as pessoas me contam em torno do álbum, das letras que continuam intemporais, etc. Uma vez tive uma conversa com um rapaz que me reconheceu num café. Ele estava de fato e gravata, dia de trabalho e tal, vira-se para mim e diz-me – “Vocês mudaram a minha maneira de estar na vida e de ver as coisas. Vocês abriram-me os olhos”. Contou-me que hoje tem família, tem filhos, está bem, mas foram as letras dos Censurados é que o ajudaram a ver as coisas de outra maneira. Fiquei parvo a olhar para ele! Para mim, são dos melhores elogios que posso ter. É a melhor influência que podemos ter nas pessoas, ajudá-las a soltarem-se quando se identificam connosco. Hoje em dia, por exemplo, vais ao Facebook e vês lá frases deste disco, tipo máximas... São 23 anos que passaram, mas acho que o pessoal não se esqueceu.

Fiquei agradavelmente surpreendido quando falei com o Samuel e ele me disse que vocês se reuniram há cerca de dois meses para um concerto aqui mesmo no Popular Alvalade. Como surgiu a ideia?
A ideia foi a de fazer uma inauguração oficial do Popular, embora o bar já estivesse aberto. O Samuel propôs-nos se estaríamos numa de dar um toque, só cinco ou seis temas. “Ya, embora!” É uma coisa que ainda está na cabeça, as músicas estão cá. O Fred não pôde vir, mas eu peguei no bacalhau, no baixo. Tivemos um ensaio um dia antes, pusemos as coisas na batata e fizemos aqui uma festarola para o pessoal. Ficámos numa de não dizer nada a ninguém, apenas anunciámos que ia haver surpresa... As pessoas já estavam mais ou menos à espera que ia acontecer qualquer coisa, mas houve alguns que foram mesmo surpreendidos na hora.

Qual foi a sensação?
Foi altamente. Tudo a cantar! Havia lá um careca de barba que 'tava todo passado da cabeça. [risos, dirigindo-se para Ivo Palitos, irmão de Samuel, que estava ali por perto] Tocámos só temas do primeiro e do segundo álbum. Foram: «Animais», «Tu Ó Bófia», «Guerra Colonial», «É Difícil», «Srs. Políticos» e a «Coxa», se não estou em erro.

Foi uma reunião episódica, mas se se proporcionar voltar a acontecer no futuro, acontecerá?
Epá, acho que sim. Somos amigos, não estamos juntos assim muitas vezes... mas por acaso ultimamente, até tenho estado bastantes vezes com o Orlando e com o Samuel. Com o Fred, não tanto. Mas, quanto a isso, é bem possível que venha a acontecer. Nada garantido, mas talvez sim.

Sem pressões.
Exacto, é mesmo por aí. ´Tá-se bem.


Em memória de João Ribas [6/05/1965 – 23/03/2014]
This Punk's Not Dead

1 comentário:

  1. Grande João,

    Faz parte do meu imaginário o concerto com NAM e com aqueles idiotas Skins os Kagalhões de Aveiro no Rock Rendez Vouz.

    E Depois no Parque do Elétrico.

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