ONTEM
71,5
kg. Quase nem dá para acreditar. Ontem, por mera curiosidade e
depois de um daqueles treinos valentes, lembrei-me de saltar para a
balança. Poucas vezes o faço agora mas, há cerca de seis anos, foi
algum excesso de peso que me levou a calçar umas sapatilhas. 89 kg,
concretamente. Da “estranha” ideia à prática foi um passo, ali
em torno da alameda da Fonte Luminosa, em Lisboa, só porque ficava
perto do local de trabalho e tinha algum tempo livre. Gostei tanto
daquilo que levava a vontade comigo aos fins-de-semana, nas visitas à
família em Santarém, com pontuais corridas numa pista de 400
metros. Certo dia, fiz 20 voltas seguidas! Surgiram as provas, o gozo que advém da corrida em grupo, a excitação em poder tirar mais
uns minutos – uns segundos que fossem – aos meus melhores 10 kms, a meia-maratona que pede algo mais... Um dia, hei-de fazer uma maratona, sussurrava uma voz dentro de mim. O que perdi em peso ganhei em mudança positiva na vida, em parte, graças à corrida. Ela
merecia esse desafio. Esse sacrifício tornado prazer.

Há então que treinar para o sonho. A
data de 6 de Outubro obrigou a que tal decorresse durante o Verão,
muitas vezes sob temperaturas altas. A não ser que quisesse ver um
deslumbrante nascer do sol entre o Cais do Sodré e Paço de Arcos,
levantando às 04h00 para começar a correr às 06h00 com o meu amigo
Joost De Rayemaker, como chegou a acontecer. Abnegação, crença e
um obrigatório “tirar partido” da experiência (e seus preliminares) foi como encarei o objectivo. Sem pressões de maior;
dois/três meses de treinos mais ou menos disciplinados e sentia-me
mentalmente confiante. Fisicamente, é sempre uma incógnita. É no
“dia D” que tiramos as dúvidas. No entanto, a semana que lhe
antecedeu trouxe-me alguma ansiedade e poucas horas de sono. Ainda mais porque, a três dias da prova, não tinha resolvida
uma questão pendente com o meu dorsal. Nada como uma ideia magnífica
para retemperar forças energéticas e sossegar demónios: um jantar
do grupo Corrida do Dia, cortesia da Ana Nogueira, na véspera da
prova, com coisas boas para degustar, e estratégias para debater. Mal
chego, colocam-me um copo de vinho na mão, néctar que nos
acompanharia durante o repasto. Falou-se muito de jornalismo e
histórias rocambolescas... e pouco de corridas. Acho que,
inconscientemente, estávamos a evitar tocar no assunto do dia
seguinte. Éramos oito, quase todos estreantes.
O GRANDE DIA
Quatro horas e meia. Dormi quatro
horas e meia!, penso para mim,
mal acordo. Um luxo. São 07h00 e estou bem disposto. Depois
da guerra com o sono nos últimos dias, temi que pudesse mesmo vir a
correr “com directa”. Esta carga na bateria chega para a
concentração e reflexos, vamos agora encher o motor de hidratos de
carbono. Foram vários dias a comer massa, combustível que já não
faz parte deste derradeiro pequeno-almoço. Mas a misturada é tal,
que me vejo a saborear ovo mexido com banana com mel com passas de
uva com flocos de aveia com... Chega! Não é preciso comer muito.
Há abastecimentos no percurso e levas o teu reforço em gel.
Vamos para Cascais.
Eram cerca de 08h50 e já todas as
saídas afectadas pelo percurso da maratona estavam vedadas ao
trânsito.
– Depois, como é que eu saio
daqui?! – pergunta-me, meio desconfiada, Júlia, companheira na vida e sempre
presente nisto das corridas.
Tínhamos deixado o carro num parque
normalmente usado para provas que fiz a arrancaram também da baía,
como os 20 Kms de Cascais. Ela não se limitava a depositar-me ali e
seguir para a meta em Lisboa; ia estar comigo até à hora de
partida. Era justo que a ajudasse a perceber a melhor forma de sair
da vila. O meu aquecimento começa então já aqui, a palmilhar ruas
em várias direcções e a decifrar o enigma junto dos agentes.
Seguimos depois para a zona da partida e cruzo-me com a malta do
jantar de ontem. Estamos todos mais-que-prontos, o ambiente geral é
animado, mas muito focado também. Já faltam poucos minutos... está
ali o Joost, ainda tenho tempo para uma curta entrevista a passar no
TSF Runners.
– Preparado?
– Sim!
Sempre são 42 kms e mais qualquer coisa, está mais calor que em
Dezembro no ano passado... vai ser um desafio.
– Tens objectivos pessoais? Sei que
fazes menos de três horas...
– Sim, o meu record são 02h54m...
vamos ver o que consigo.
(02:52:00, 27º da classificação
final, foi a façanha deste belga dividido entre Portugal e Angola,
fotógrafo de profissão, atleta na adolescência, tendo retomado só
há pouco tempo as pistas, após trinta anos de paragem. Uma
inspiração.)
De facto, os smartphones são
coisas fantásticas. O mesmo aparelho que gravou as palavras do Joost
com nitidez de micro quase profissional é o mesmo que levo no braço
para contabilizar a minha corrida, dando-me orientações de tempo.
Bang! Soa bem alto o tiro de partida e,
na área dianteira onde me encontro, consigo ver os principais
atletas africanos a tentarem ganhar, desde logo, posições na frente
do pelotão. Aceno à querida Júlia e sigo em direcção ao Parque das
Nações. Bom, talvez não seja boa ideia pensar já no
destino... A manhã está óptima, há que desfrutar destas ruas no
centro da vila e do momento especial que é correr uma maratona.
Estamos em marcha!
– Os primeiros já devem levar uns 5
minutos de avanço – ouço, de raspão, um senhor de idade comentar
para o colega do lado. Muito "moralizante". Ainda não estavam
concluídos 3 kms de prova. Logo à saída de Cascais havia bastante
gente a apoiar os atletas na estrada, mais do que eu pudesse imaginar
e o ambiente em cima e ao lado do asfalto era descontraído. Demais, até. Cedo percebi que ia, talvez, “muito” rápido. Tendo partido
à frente e levado pelo subconsciente de tanta gente – mesmo assim
– a passar-me, pensamos que vamos, pelo menos, no ritmo planeado;
no nosso ritmo. Errado. É a minha primeira maratona, há por aqui
muita gente experiente e mais rápida, o teu nível é um pouco
mais atrás, constato a
posteriori. Após a primeira saída da Marginal e,
contornado que está o Casino do Estoril, faço a primeira tentativa,
a sério, para saber, afinal, a quantas ia.
– “...4 minutes and 58 seconds” – confirmo as minhas suspeitas. Ainda ouço a moça da aplicação
Nike+ a concluir a informação de pace médio naquela fase;
para quem queria fazer os primeiros 10 kms a uma média de 5:25/km
ia, de facto, demasiado rápido. É nestas alturas que pensamos:
tenho de arranjar um Garmin. Ou relógio semelhante. Os dados
na app do telemóvel, a cada quilómetro, costumam ser
suficientes e as contagens são relativamente precisas mas, nesta
manhã, optei por nem levar auscultadores, para absorver toda a
atmosfera da maratona. As passadas audíveis, as palmas e gritos de
alento, as “bocas” e gargalhadas entre maratonistas, a brisa que
ao Tejo soprava, tudo isso era para escutar. Só o aparelho em
“alta-voz” me fornecia alguma informação, mas o ruído era tal
que, raramente, conseguia captá-la toda. Coisas como:
– Vamos embora, já só faltam 34! –
essas, ouviam-se bem. Foi a forma como uma senhora na Parede achou que nos podia motivar, frase seguida de umas risadas de quem a
rodeava.
– Puxa, tem ali um “8” bem grande
ao pé dela e vai falar no 34 – contesta um corredor ao meu lado,
meio jocoso, meio incomodado por alguém lhe lembrar de quanto falta
para acabar esta saga. Na verdade, ainda nem 1/5 da prova estava
galgada. Mas eis que, pouco depois, dou por mim em Carcavelos.
Correndo ao lado do paredão que frequentemente uso para treinos.
Zona que me é grata até porque serviu, um par de vezes, como
destino de um traçado tão perigoso quanto desafiante: os 15 kms que
o separam da minha casa,
incluindo toda a Estrada de Paço de Arcos.
Por esta altura, o calor ainda não era
complicado e tinha até prescindido do primeiro abastecimento. Ao 10º
km há que aproveitar a água e conferir andamento. 49:50 indicava
ali um cronómetro intermédio. 4 x 10k a este ritmo (5:00/km) +
2k e fazes a maratona antes das 03:30, equacionava comigo uma voz
interior, tão sonhadora quanto irresponsável. Cedo voltei à terra,
pouco depois da Praia da Torre, quando ouço uma cavalgada coordenada
atrás de mim. Era o grupo que ladeava o “balão”, justamente,
das 03:30. Acompanhei-os durante uns minutos, até que a mesma voz,
resignada, me diz – deixa-os ir; se tiveres pernas para os das
03:45 já não será nada mau. Uns metros à frente...
– Força, Nelson! Vais bem. – Esta
voz é real. Mas quem é que me está a conhecer aqui? Era a
Ana. A anfitriã do meeting de ontem.
– O jantar estava óptimo! –
gritei-lhe, enquanto ouvia as minhas últimas sílabas ecoarem em
forma de agradecimento.
– Isso é que é importante! –
dispara um maratonista ali perto, que não nos conhecia de lado
nenhum. É este o espírito das corridas longas. Somos um grande
grupo de desconhecidos no mesmo barco, com gestos de camaradagem, se
necessário fôr. Segue-se uma segunda saída da Marginal, desta vez
mais extensa, com passagem junto à câmara de Oeiras e retorno com
direito a cruzar-me com algumas caras familiares, uns mais atrasados
e outros mais adiantados. Trocámos alentos e foi bom para fugir a
uma certa monotonia que já se acumulava junto ao rio, trazendo uma
parcela de técnica ao nosso rolamento. Nestas provas é importante
dosear alguma variedade, manter o foco e o ritmo, mas tirar partido
de pequenas excitações ao longo do percurso que nos possam servir
de boosts para não cairmos no tédio. Daí que, o desvio à
esquerda depois de Caxias, bem junto ao litoral, se tenha revelado uma
interessante fase da prova. Estava no mesmo piso que usara
anteriormente para treinos longos e foi óptimo passar por ali
ladeado pelas bandeiras dos países representados naquele pelotão,
algumas hasteadas por jovens voluntários em cima das pedras. Além
do mais, esta escapatória serviu para poupar os atletas à subida da
“curva do Mónaco” ideia a que, acredito, a maioria ficou
agradecida. Pouco depois, percorrido que foi o túnel sob a linha de
comboio na estação da Cruz Quebrada, uma surpresa. Espera,
parece o César... t-shirt amarela da Corrida do Tejo, é ele! De
câmera em punho, o meu irmão fazia por perpetuar a ocasião,
enquanto puxava por mim
– Boa! Vais quase no grupo das 03:30!
– Pois, talvez não devesse. Não tinha abrandado muito mais,
entretanto. Mas foi fantástico vê-lo ali e receber mais uma
injecção de determinação para não desiludir aqueles a quem tinha
prometido fazer isto.

Sendo a maratona uma prova quase tão
estratégica quanto física, há muitos factores a ter em conta
durante os seus 42,195 kms. O lado mental tem quase tanto com que se
entreter como as pernas. Além do ritmo, há que ir considerando o
que (e quando) ingerir, não deixar de hidratar mesmo não sentindo
sede, corrigir posições do corpo, etc. No braço direito
transportava uma segunda armband para telemóvel, foi a forma
que encontrei para carregar dois géis próprios para suplementação
nesta prova, uma vez que não me dou nada bem com bolsas à cintura e
anexos semelhantes. O pequeno-almoço tinha sido bem recheado, mais
uma barra energética meia hora antes de partir; não sentia fome,
nem mesmo qualquer tipo de má digestão como, ocasionalmente, me
acontece. Confiando nas recargas e nos abastecimentos sólidos
posteriores, vejo-me indeciso metros antes do abastecimento ao km 17. Há ali banana. É pegar ou largar. Pegar
significa acautelar as reservas de nutrientes e reforço de magnésio;
largar equivale a manter a mesma cadência rítmica e não arriscar
perder o andamento, sobretudo, por obrigar a essa “tarefa hercúlea”
que é a de mastigar. No último momento, mantive-me à esquerda e
não peguei em nada. Nem sequer em água. E ocupar as duas mãos,
então, estava fora de questão. Não foram precisos dez segundos
para me arrepender. O Nelson é assim, indeciso nos piores momentos.
O que vale é que se dá bem a improvisar; tem um qualquer gozo
masoquista quando triunfa na arte do desenrascanço. Aquela,
ninguém comeu. Deduzo eu de uma metade de banana, prostrada no
chão, a pedir que a apanhe, corrigindo assim o erro cometido há
momentos. Nestes desafios não podemos estar com cerimónias, há que
resolver pequenas situações que podem ser decisivas no quadro
final.
– Fuck, está vazia! – exclamo com
mágoa, olhando para uma casca de banana perfeita em tudo... menos no conteúdo. A posição que ocupava no pavimento, dava outra ideia.
– Toma, queres? – ouço alguém,
atrás de mim, que presenciou a cena. Aceitei, de bom grado, metade
(de uma metade) de banana que um comparsa maratonista me deu, mas só
depois de me confirmar que não lhe fazia falta. É deste espírito
que falava há pouco que também se fazem estas experiências. Consta
que, nos trails, todo esse companheirismo ainda vem mais ao de cima.
Nunca fiz nenhum, mas é um dos próximos desafios a que me vou
deixar seduzir.
Verifico que atinjo uma meia-maratona
“confortável”, em 01h47m. Continuo a sentir-me bem e começo a
acreditar naquilo que, na verdade, nunca cheguei a duvidar
seriamente: Isto é para acabar e é para se fazer. Só que a segunda
parte deste jogo, nada teve a ver com a primeira. Não cheguei a
sentir uma verdadeira “parede” – adiante, não considero que
foi uma parede de cansaço que me fez reduzir seriamente o ritmo –
mas, por volta do km 24, chega um inimigo inesperado, daqueles que,
ainda assim, nos pode sempre bater à porta. A dor de burro. Notei
que, nos últimos treinos mais esforçados, este indesejável sintoma
visitou-me. No fundo, é um limitador de esforço, de velocidade, se
quiserem, a dizer-nos que estamos numa mudança acima daquela que
devemos. Tenho sabido como ultrapassar o problema abrandando o passo
e fornecendo mais ar aos pulmões mas, nesta manhã, já em plena
Avenida da Índia, a coisa estava difícil de desaparecer. Enquanto
vou concentrado na solução do problema, pelo canto do olho,
apercebo-me de alguém não totalmente estranho. Olha, é a Luzia
Dias, ali a dar força e palavras de alento à malta. Conhecia-a
de a ver subir ao pódio na prova de 10 kms a que dá nome na zona do
Lumiar, a qual tive oportunidade de fazer por duas vezes. Com uma
exagerada inocência e alguma lata devido ao quase-desespero, convoco
a experiente atleta do Sporting CP para uma consulta de
aconselhamento, logo ali.
– Desculpe, como é que se resolve a
dor de burro?
– Incline-se para a frente e corra
para cima da dor – responde-me, prontamente, a prestável rapariga
enquanto corria ao meu lado. – Inspire fundo, conte até 4 e
expire.
– Obrigado! – Lá fui nos 500
metros seguintes meio curvado quando precisava de usar este truque
para atenuar o desconforto. E não é que a dor desapareceu mesmo?
Voltei ao meu normal, que deveria ter sido o “normal” dos
primeiros quilómetros – 5:25/km.
Agora, o calor já se fazia
sentir e de que maneira, dando razão aqueles que mostraram
preocupação no agendamento de uma prova destas, para a primeira
semana de Outubro, a começar às 10h05 da manhã. Pessoalmente, não
foi dramático, pois estava acostumado a correr com temperaturas
relativamente altas, sendo que os óculos e o chapéu foram
fundamentais para atenuar os efeitos da canícula. Mas houve muitos
que não tiveram a mesma sorte (ou preparação?) e, à chegada a
Alcântara, eram já vários os “encostos”, aqui e ali, com
recurso a cuidados médicos, mesmo. Alertas para aproveitar,
praticamente, todos os abastecimentos a partir dali, nem que fosse
para refrescar só a cabeça e o corpo.

O ambiente entre os corredores ainda
era de relativa boa disposição nesta fase, uns bem empenhados em
honrar a sua melhor performance não perdendo energias com nada nem
com ninguém, e outros ainda com força para uma piada. Perto do 30º quilómetro, o pelotão já vai completamente “esfrangalhado”,
atletas “solitários”, separados por 50 metros entre si, adiante
um grupo mais compacto e aquele corredor que ultrapassamos e nos
ultrapassa várias vezes ao longo do percurso. Algo está errado
com o teu ritmo ou com o dele,
penso. Ou com o dos dois. Após Santos, avisto, provavelmente,
o runner com a passada mais esquisita que alguma vez vi. A
descrição mais aproximada será a de uma aranha com andarilhos, com a cabeça em riste. Jovem, previsivelmente estrangeiro e talvez portador de deficiência. Arrastava os passos pelo asfalto com uma audível dificuldade. Bom, também quer fazer uma maratona.
Tem tanto direito como os outros. Espero que consiga, mas duvido,
calculei. Quando passo por ele, cruza-se connosco um transeunte com
um esgar de inquietação na face. Preocupado, atentava naquele
espectáculo.
– É mesmo assim – diz um corredor
ali perto, antes que fizéssemos ou disséssemos alguma coisa.
– Ah, é mesmo assim... – reage o
homem, não muito convencido. Também fiquei a matutar naquilo. 100
metros adiante, não resisto em virar-me todo para trás – um
esforço considerável naquela fase da prova – e vejo o rapaz na
mesma posição robótica, mas já imóvel e segurado por três ou
quatro participantes.
– Chame uma ambulância! Chame os
médicos ali para trás! – indiquei eu e alguns corredores a um
polícia que logo ali avistámos. Com uma ponta de choque, mas não total
espanto pelo que previra, segui o meu caminho.
À chegada ao Cais do Sodré, novo foco
de apoiantes, daqueles que aplaudem toda a gente e ainda levam um
obrigado, quando temos força respiratória. São importantes
aquelas palavras, mesmo que não sejam para nós. Fazem-nos sentir
que não estamos sozinhos, apesar dos muitos quilometres que
fazemos, entregues a nós próprios. Menos simpática foi, logo a
seguir, a passagem pelo empedrado da Ribeira das Naus, uma violência
para o esqueleto após três horas que, já por si, em terreno plano,
não são pêra-doce. Valeu o chuveirinho lançado pelo carro dos
bombeiros. Seguiu-se o último desvio da estrada principal, com
passagem pela baixa, Restauradores e retorno pela Rua Augusta. Teria sido ainda mais interessante sem turistas a
atravessarem-se à frente, mas acredito que os atletas mais
adiantados não tenham sido sujeitos a uma ligeira gincana, aqui e
ali. É só nesta altura que decido interiorizar que já estou perto
da fase final da prova. Para trás, encarei como novidade e desfrute,
sem pensar na região da meta. O trabalho mental também passa pela
contenção de expectativas.
Tendo já feito o percurso restante em
duas meias-maratonas (da ponte Vasco da Gama, que decorria
paralelamente), consciencializei-me que já só falta mais um
pouco mas, atenção, que a paisagem é monótona e nada está ainda
conseguido. Não abdiquei do gel que nos deram antes de Santa
Apolónia e preparei-me para enfrentar os últimos oito quilómetros. Reparo em cada vez mais
gente a caminhar e, num sentimento misto, dou por mim a pensar que a
maratona se tornou numa moda dentro da moda que são as corridas. O
que é bom, é uma tendência saudável, mas há muito pessoal que
vem para aqui impreparado. A maratona é para se correr, não é para
andar! Digo a mim mesmo, sem ponta de crítica para quem o queria
fazer, mas por esta ou aquela razão, não o estava a conseguir.
Dizia-o a mim mesmo para me mentalizar, naquela fase decisiva. Talvez
o subconsciente o estivesse a esconder do intelecto realista, mas
também já estava a sentir os meus ameaços de... cãibras. Estamos
no abastecimento do km 36 e, com determinação, arranco os gomos à dentada a uma meia laranja sacada
por baixo do viaduto. Cada movimento divergente de uma passada
rectilínea e constante, repercute-se nos gémeos com prenúncio de
um dos músculos “saltar” a qualquer momento. Mesmo assim, não
resisto à tentação de, ocasionalmente, me virar para trás para
saber, quem vem aí? Como estão os outros? Não me sentia
exausto ao nível do tórax como, por exemplo, no final de uma
corrida de 10 kms em que vamos a dar tudo para ganhar mais umas
posições. Aqui, trata-se de um cansaço mais muscular e, à
passagem no entroncamento da TSF, pensei mesmo em trabalho. Porque
não trabalhaste mais as pernas? Talvez seja o ácido láctico
acumulado... Era tarde para lamentações. Havia que chegar ao fim.
Assimilada a “obrigação” de fazer isto a correr, só havia uma
solução: diminuir, consideravelmente, o ritmo. Os últimos cinco
quilómetros foram todos feitos na casa dos 6:00 e qualquer coisa.
Sentia-me um carro com combustível, mas sem embraiagem.
Se parasse, corria o risco de não voltar a arrancar. Se
cedo e caminho para reganhar estabilidade muscular, torno-me num vai-vem entre corrida e passo como estes que vão aqui ao lado e que
estão sempre a alternar posições comigo. Além disso, perderia
“a minha” maratona. Preferi o sofrimento. Preferi o prazer de
tentar.
À entrada no Parque das Nações já
nem penso muito em tempos. Há que fazer uma corrida digna e isso
significa dar o máximo nos quilómetros finais. Claro que, tendo em
conta as circunstâncias, “o máximo” era pouco mais que o mínimo
indispensável para não ter um desaire abaixo dos joelhos. De novo,
os sentimentos mistos. Por um lado, estou quase a fazer uma maratona; é maravilhoso, por outro, é só aquela parte do corpo
que me atormenta. Com os gémeos de outro gajo, fazia esta recta
toda a abrir! A recta é a Av. Dom João II, penúltima rua longa
antes da meta. Aqui, já preparava o corpo mentalmente para o
empedrado da Alameda dos Oceanos, a última dificuldade, que decidi
substituir, em termos romantico-cerebrais, por um fofo tapete
vermelho. Era merecido. E também era mais fácil imaginar do que
sentir. Última curva, deixo o Pavilhão Atlântico para trás, passo
por um companheiro a coxear sem desistir... serei eu o próximo?
Não! Isso das cãibras, se calhar, nem está no limite. Pensa só
que consegues. Aliás, nos últimos três quilómetros, registo
uma melhoria gradual de tempos. Faltam 300 metros, ainda dá para acelerar um bocadinho. Quem te esperou estas horas, merece ver-te
chegar “fresco”. E sei que estão preocupados. Recta da
meta... onde estão? Olho para a direita – ali estão
eles! Levanto os braços e agradeço o apoio da família sentindo
uma faixa imaginária a acariciar-me o peito. Nesse mesmo instante, o
esticão que dei ao corpo precipita a iminência de me prender o
músculo da perna direita, mas consigo “segurá-lo”. 03:54:38,
tanto? Não sejas estúpido... acabaste de concluir a tua primeira
maratona, não ligues ao tempo. Não foi mau, até!
Não, foi
tudo bom.
AMANHÃ
Amanhã é dia de treino longo. Uns 25
kms, no mínimo. Os sonhos concretizam-se e alimentam-se. Sonhos que
requerem preparação, mas que revivemos as vezes que quisermos. As
que pudermos, munindo-nos das lições aprendidas na primeira
experiência. 23 de Fevereiro é logo ali ao virar da esquina e tenho de tratar da inscrição. É a data da Maratona de Sevilha 2014.
42/42 é um singelo relato de alguém
que decidiu tentar a sua primeira maratona aos 42 anos de idade.
Título inspirado em “50/50”, livro em que o ultra-maratonista
Dean Karnazes conta a odisseia de fazer 50 maratonas, em 50 dias
seguidos, pelos 50 estados norte-americanos.