Chega ao fim mais um ano dos bons, em matéria de discos pesadotes. Eis a sempre subjectiva equação dos que mais gostei com os melhores. Na verdade, estes acabam por ser os discos que mais ouvi e muitos outros ficam na órbita do desconhecido por não ter tido tempo ou curiosidade suficiente para os descobrir. Long Live Lemmy! (e todas as forças inspiradoras).
1 – CATTLE DECAPITATION – The
Anthropocene Extinction
2 –
MY DYING BRIDE – Feel The Misery
3 – RAM – Svbversvm
4 – INTRONAUT – «The Direction Of
Last Things»
5
– GOROD – A Maze Of Recycled Creeds
6 – SATAN – Atom By Atom
7 –
BLACK BREATH – Slaves Beyond Death
8 – GOD IS AN ASTRONAUT – Helios |
Erebus
9 – ENSLAVED – In Times
10
– SATAN'S HOST – Pre-Dating God Part 1 & 2
11 – BEARDFISH – +4626-Comfortzone
12 – BARONESS
– Purple
13 – TIGRAN HAMASYAN – Mockroot
14 – RITUAL KILLER – Exterminance
15 – AMORPHIS – Under The Red Cloud
16 – WINDHAND
– Grief's Infernal Flower
17 – ARMORED
SAINT – Win Hands Down
18 – AVATARIUM – The Girl With The
Raven Mask
19 – GOATSNAKE – Black Age Blues
20 – MOTÖRHEAD – Bad Magic
21 – BETWEEN
THE BURIED AND ME – Coma Ecliptic
22 – STEVEN WILSON – Hand. Cannot.
Erase
23 – PARADISE LOST – The Plague
Within
24 – GRAVEYARD –
Innocence & Decadence
25 – KONTINUUM – Kyrr
26 – SYMPHONY X – Underworld
27 – THE
ARISTOCRATS – Tres Caballeros
28 – SWALLOW THE SUN – Songs From
The North I, II & III
A habitual mescla de gosto pessoal vs. consciência da qualidade vs. o que mais rodou por aqui nos últimos doze meses. Este ano, decidi ordenar os álbuns numericamente (de facto) já que a lista representa uma certa hierarquia de preferências do que foi escutado no vasto catálogo de peso. Degustai e cuidai de ouvir alguns que possais não conhecer. \m/
1. TRIPTYKON
– Melana Chasmata
2. SÓLSTAFIR – Ótta
3. PRIMORDIAL – Where
Greater Men Have Fallen
4. ARCHSPIRE – The
Lucid Collective
5. TRIOSCAPES
– Digital Dream Sequence
6. MACHINE
HEAD – Bloodstone & Diamonds
7. BLOODBATH
– Grand Morbid Funeral
8. MARTY
FRIEDMAN – Inferno
9. TRANSATLANTIC
– Kaleidoscope 10. TRAP THEM –
Blissfucker
11. MASTODON – Once
More 'Round The Sun 12. BEHEMOTH – The
Satanist
13. ANIMALS AS LEADERS –
The Joy Of Motion
14. GRAND MAGUS –
Triumph And Power
15. ANATHEMA – Distant
Sattelites
16. ANAAL NATHRAKH –
Desideratum
17. DEVIN TOWNSEND – Z²
18. PORTRAIT –
Crossroads
19. OPETH – Pale
Communion
20. YOB – Clearing The
Path To Ascend
21. RINGS OF SATURN –
Lugal Ki En
22. SANCTUARY – The
Year The Sun Died
23. MAYHEM – Esoteric
Warfare
24. NIGHTINGALE –
Retribution
25. OVERKILL – White
Devil Armory
26. VADER – Tibi Et
Igni
27. MONO – The Last
Dawn / Rays Of Darkness
28. WHILE HEAVEN WEPT –
Suspended At Aphelion
29. BODY COUNT –
Manslaughter
30. HANNES GROSSMANN –
The Radial Covenant
31. VALLENFYRE –
Splinters
32. ALCEST – Shelter
33. CASUALITIES OF COOL –
Casualities Of Cool
34. AT THE GATES – At
War With Reality
35. WOLF – Devil Seed
36. FU MANCHU –
Gigantoid
37. FLYING COLORS–
Second Nature
38. SLASH – World On
Fire
39. GOATWHORE –
Constricting Rage Of The Merciless
40. HELSTAR – The
Wicked Nest
41. RIVAL SONS – Great
Western Valkyrie 42. DEAD CONGREGATION –
Promulgation Of The Fall 43. GHOST BRIGADE – IV
– One With The Storm
44. THE SKULL–
For Those Which Are Asleep
45. BLUES PILLS – Blues
Pills
46. WOVENHAND –
Refractory Obdurate
47. RISE OF THE NORTHSTAR
– Welcame
48. EVERGREY – Hymns
For The Broken 49. CONAN – Blood Eagle
50. ARCHITECTS –
Lost Forever // Lost Together
NACIONAIS
1. DAWNRIDER – The Third Crusade
2. BLEEDING DISPLAY – Deviance
3. MARTELO NEGRO – Equinócio Espectral
4. MORE THAN A THOUSAND – Vol. 5: Lost At Home
5. WE ARE THE DAMNED – Doomvirate
6. PERPETRATÖR – Thermonuclear Epiphany
7. KILLIMANJARO – Hook
8. THE SORCERER – A Graveyard Of Fallen Dreams
9. BLACK BOMBAIM – Far Out
10. EQUALEFT – Adapt & Survive
(offside) MÃO MORTA – Pelo Meu Relógio São Horas De Matar (provavelmente, o álbum nacional do ano, mas um pouco fora do âmbito metal que pauta a lista).
Em jeito de homenagem. O Ribas tinha uma voz para ser ouvida e quem gosta da música dele, aprecia essa partilha. De histórias, de saber, da memória apurada desta eterna referência punk dos Censurados, Tara Perdida e Kú de Judas. O diálogo abaixo aconteceu no passado dia 17 de Dezembro de 2013 no Popular Alvalade, espaço de Lisboa que representa bem o espírito que floresceu naquele bairro. Com parte originalmente publicada na revista LOUD! #154 (Quadro de Honra), reproduz-se agora esta conversa na totalidade e sem edição. Em honra ao João Ribas que, entre idas ao hospital – apesar de irradiar sempre boa disposição – arranjou um bocadinho para relembrar comigo os tempos do álbum «Censurados» de 1990. E não só.
Ainda te lembras bem do início dos
Censurados? Foi uma boa altura desta tua vida com bandas?
Foi. É mesmo
capaz de ter sido a mais importante. Foi o maior degrau que subi na
minha carreira, vá lá, até à altura. E, se calhar, até hoje.
Estava nos Kú de Judas que nunca chegaram a gravar... o que anda por
aí, é ao vivo. Depois fui para a Alemanha e, quando voltei, vinha
com ideias diferentes de como fazer as coisas. Comecei por falar com
o Paulo Ampola, que era baixista dos Crise Total, fizemos umas
músicas e falaram-me do Samuel que também parava aqui no Jardim dos
Coruchéus. Fui ter com ele, aceitou logo e, nessa fase inicial, o
guitarrista era o Tiago, um amigo nosso. Aí, começámos a ensaiar,
praticamente todos os dias, na casa da minha mãe e, de um dia para o
outro, virámos músicos. Em vez de estarmos no jardim a beber
bejecas, íamos para o meu quarto beber as bejecas e tocávamos!
[risos]
Chegaram a tocar no RRV com essa
primeira formação dos Censurados mas, até gravarem o álbum, houve
mais fases. Quais foram os primeiros temas a ficarem prontos?
As primeiras
malhas foram feitas ainda com o João Pedro Almendra. Ele estava nos
Peste & Sida mas, na altura, tinha saído. Como eu sempre tive
aquela fisgada do João Pedro, convidei-o para cantar connosco e os
«Srs. Políticos» e «É Difícil» ainda são letras dele. Ainda
fez três ou quatro ensaios mas, depois, os Peste estavam a gravar e
ele teve de voltar para eles. Mais uma vez fiquei eu na voz; já nos
Kú de Judas tinha acontecido isso com ele – saiu para os Peste &
Sida e fiquei eu a cantar nos Kú de Judas.
Portanto, a tua ideia inicial nunca
foi a de ser vocalista?
Não. Eu sou
vocalista, praticamente, por causa do Autista. [risos] Não
desafinava e, como era eu que fazia as músicas, sabia cantar tudo e
tornava-se mais fácil. Ele saía, mas ficava lá eu e as coisas não
acabavam.
Em Censurados sempre tocaste
guitarra, apesar de um vídeo ou outro em que apareces sem ela.
Sim, em estúdio,
sempre toquei guitarra. Só em Tara Perdida, a partir de 2002, quando
chamámos o Ganso para a banda, é que decidi dedicar-me à voz a
100%.
Mas voltando aquela fase em que
regressaste da Alemanha. Depois, não demorou muito tempo até terem
material pronto para o álbum dos Censurados...
Sim, mas atenção
que quando vim da Alemanha, eu não queria acabar com os Kú de Judas.
Eles entretanto acabaram e eu fiz outro projecto. A ideia que trazia
era a de fazer uma banda mais consistente, com mais trabalho. Kú de
Judas não deu e arranquei mais a sério para Censurados.
Entretanto, mais à frente, junta-se
a ti e ao Samuel, o Orlando Cohen e o Fred Valsassina.
Pois, isto porque
o Tiago era um bocado tresloucado, não estava assim muito na nossa
onda. Ainda chegámos a tocar com o Paulo, mas ele tinha um trabalho
que não lhe permitia estar numa banda e, então aí, é que falámos
com o Fred que também parava aqui nos Coruchéus. Tínhamo-lo visto a
tocar baixo, tocava blues com o Pedro Abreu, tudo ali na batatinha
e convidámo-lo. O Orlando surgiu porque saiu dos Peste & Sida.
Precisávamos de um guitarrista com alguma urgência e integrou-se
rapidamente connosco, até porque estava dentro da mesma onda. O
primeiro concerto desta formação foi a 2 de Setembro de 1989. Mas
Censurados começou em 1988, no Verão.
Há mais de 25 anos. Quais são as
grandes diferenças que encontras nas bandas de então e do tempo
presente?
Hoje em dia, as
bandas preocupam-se mais em fazer as coisas bem. Mostrar ao público
bom trabalho. Dantes, havia muito a onda do bora, 1, 2, 3, 4 e tá
a andar de mota! Não quer dizer que não fosse fixe, o espírito
era diferente, era assim... Penso que, a esse nível, as bandas em
Portugal evoluíram bastante. Começaram a preocupar-se mais com os
ensaios – o ensaio é fundamental. O pessoal às vezes cagava um
bocadinho nisso, havia aquela pressão de ensaiar uma vez por
semana... o pessoal queria era dar concertos! Hoje há outra
preocupação a todos os níveis, desde as gravações à promoção;
antigamente era tudo um bocado ao molho. Era a onda da adolescência,
a rebeldia a sair toda para fora e, mesmo na pós-adolescência, a
loucura ainda continuava!
Olhando hoje para os três discos, é
do «Censurados» que continuas a gostar mais?
É aquele pelo
qual tenho mais carinho. Antes de mais, foi o meu primeiro disco.
Para eles também foi e, por isso mesmo, toca-me particularmente. É
aquele que tem mais de mim, já que comecei por fazer as músicas.
Com a entrada do Orlando e do Fred, o trabalho passou a ser feito de
outra forma e o «Confusão» já traz outros elementos e revela mais
trabalho. E o «Sopa», para mim, foi um bocado desilusão, mesmo a
nível de produção. Não o teria feito daquela forma, se fosse
hoje. Esse álbum é um pouco diferente. Já tem muitas coisas de
heavy metal à mistura, não quer dizer que isso seja mau porque
sempre tivemos uma costela metal, seja pelo Samuel, seja porque eu
sempre gostei de algumas coisas. O Fred também trazia algumas cenas
assim. Nessa altura, o Orlando ouvia Metallica! O «Sopa» ficou
diferente dos outros, fomos procurar outras coisas, o que eu acho
bom, para não estarmos sempre a fazer o mesmo. OK, tocamos punk
rock, mas os músicos não querem estar sempre a fazer a mesma
coisa... São muitas horas que estão ali, penso que há um grande
trabalho dos músicos em si, mas foi quando percebemos que as ondas
musicais de cada um estavam a ficar bastante diferentes.
Foi o princípio do fim?
Sim, talvez tenha
sido. Ainda fizemos em '93 uma tournée com o «Sopa» e foi
excelente. Demos inúmeros concertos; apesar de tudo, foi uma altura
muito boa para a banda.
Mas quais considerarias os anos de
ouro dos Censurados?
1991 e '92. Quando
saiu o «Confusão» estava toda a gente interessada na banda.
Lembro-me que fizemos o lançamento do álbum na Zona+. Como tínhamos
feito a tour com os Xutos, ficámos mais conhecidos a nível
nacional, as pessoas que nos viram nos Xutos, pelos vistos, gostaram
e, no ano seguinte fomos quase aos mesmos sítios onde tínhamos ido
com eles, mas já em nome próprio.
Dessa altura
inicial, de que histórias marcantes ainda te lembras? Aqueles
episódios próprios de uma banda a emergir e que ainda te suscitam
um sorriso hoje.
Há
bastantes. Com Censurados houve vários, na estrada, por exemplo...
Lembro-me da primeira vez que fomos a França, fomos de carrinha ao
festival Printemps de Bourges. Os Ramones tocavam lá dois dias
depois de nós, mas tivemos de ir para Paris e não vi Ramones nessa
altura. Já tinha visto em 1981, felizmente, foi fixe ainda vê-los
em puto. [risos] Foi em Cascais, lembro-me que fizeram dois dias, 24
e 25 de Maio, e eu vi-os a 25. Mas voltando a França, tivemos de
fazer Paris-Lisboa na mesma carrinha, bazámos numa segunda-feira e
tínhamos concerto cá na quarta-feira. A dormir na carrinha, todos
rotos, chegámos mesmo a tempo do soundcheck.
Fazia
anos nesse dia e ainda fomos à Feira Popular jantar e demos um
grande concerto! Era numa tenda de circo da alameda da cidade
universitária, aquilo estava cheio, esquecemos o cansaço e foi uma
cena memorável. A minha mãe foi de Mini com a mãe do Fred!
Lembro-me de as ver com dois seguranças ao lado e elas – “nós
não precisamos!” [risos] A minha mãe foi a muitos. Ainda chegou a
ir a concertos de Tara Perdida.
Atrás disseste
que ensaiavas em casa. Sempre tiveste o apoio da família?
A minha mãe é a pessoa mais importante da minha carreira musical.
Foi ela que me pôs nisto, praticamente. Deu-me todo o espaço para
fazer isto. Não era qualquer tipo de entrave, antes pelo contrário.
Ela dizia mesmo ao pessoal – “vocês têm de ensaiar porque, sem
ensaios, ninguém faz nada”. Às vezes comentava que gostava muito
da melodia daquela... “depois, estragam tudo”. Claro, era quando
vinha o barulho! [risos] Participava bastante, mas deu-me todo o
apoio por abrir as portas para poder tocar lá em casa. Às vezes,
não tinha trabalho, era ela que me ajudava e isso facilitou a minha
vida quando foi preciso.
A ela, deves
bastante?
Tudo. Posso mesmo dizê-lo. E, quando digo tudo, é porque consegui
ser aquilo que sempre sonhei. Ela deu-me isso. O resto, claro, é o
fruto desse trabalho que ela impulsionou em mim. Eu acho que havia
qualquer coisinha na minha mãe, que lhe dizia que não havia nada a
fazer. [risos] Há aqueles pais que entram naquela – “ah, agora
tens de ir trabalhar” – mas ela viu que eu sempre trabalhei em
teatro, era técnico de teatro, fazia som e luz, fazia digressões de
teatro... Aliás, se não fosse músico, estou convencido que hoje
andaria nessa vida, até porque era uma profissão de que eu gostava
bastante. Cheguei a ser convidado para o Teatro Aberto, como técnico
de luz definitivo, mas era incompatível fazer as duas coisas. Se
tinha concerto e peça no mesmo dia, não podia estar nos dois sítios
e tive de optar. Uma vez, num concerto dos N.A.M., foram-me buscar à
Comuna a toda a velocidade, fomos quase a 200 para o Fogueteiro e
acabámos por não dar o concerto! Até 1990 ainda fiz as duas
coisas, mas quando chegou a tournée com os Xutos &
Pontapés, tive mesmo de tomar uma decisão – ou teatro, ou música.
E a história do
«Não», quando a tocaram pela primeira vez num concerto no Rock
Rendez-Vous. Consta que a letra nasceu aí mesmo, espontânea!
Foi
ali mesmo, no palco. A música não tinha letra, só dizia “não”...
tipo, tá-ne-ná-ná-não!,
tá-ne-ná-ná-não!
A música tinha a estrutura feita, mas lembro-me de perguntar ao
Orlando se a íamos mesmo tocar... E ele – “claro!”, “epá,
mas isso não tem letra.”, “desenrasca-te!” E eu calei-me.
'Bora!. Foi a partir do que ouvi gravado no concerto do RRV, porque
eles gravavam os espectáculos todos, é que fiz a letra do «Não».
Coisas como não
consigo compreender o que é que eu ando p'rá aqui a fazer
saíram-me no momento. Há para lá coisas que não aproveitei como
palavras tipo feisy,
palavras que não existem... mas estava afinadinho e seguiu.
Letras que, é
incrível, se mantêm hoje actuais, desde a «Angústia» aos «Srs.
Políticos». Isto foi no tempo do cavaquismo e...
Olha, nem sei, porque eu ligava tanto a isso, que nem sei quem era o
parvalhão que lá 'tava!
Seja como for,
está tudo igual. [risos] Concordas que são letras que podiam servir
para canções de hoje?
Sim, não és o único, muita gente diz isso. Às vezes, quando está
a passar Censurados em algum lado, há pessoal que vem ter comigo a
dizer-me que esta ou aquela música é intemporal. Há coisas que,
admito, têm vinte e tal anos e estão actualíssimas. Podiam ter
sido feitas hoje.
No
caso do «Animais», por exemplo, ainda sentes que toda
a gente olha p'ra mim, parece que me querem comer?...
Já
não olham tanto. [risos] Mas ainda olham. Assim sempre
desconfiados... este povo é muito desconfiado. Já reparei que, se
estiver de pijama – num hospital, por exemplo – a pessoa está a
falar comigo, está tudo bem. Quando me começo a vestir, a reacção
muda! Depois vêem-me a espetar o cabelo, a pôr-me todo de preto e
ficam naquela – “mas quem é este gajo?!” Há quem veja duas
pessoas diferentes ali. Na altura dos «Animais» era mesmo a onda de
punkalhada e tal. Desde puto que uso o cabelo espetado, quem usava
moicano era o có-co-ro-có-có,
claro que o pessoal nem ligava, estávamo-nos bem era a cagar para
isso. Era tipo – quero é que te vás foder, eu ando como eu
quiser. É um dos temas marcantes do álbum, sem dúvida. Mas também
o é, por exemplo, a «Guerra Colonial». Há refrões que me tocam
particularmente, de todas as cenas que já gravei. Essa é uma das
malhas que me dá uma sensação, pura e simplesmente, espectacular.
Quando começo a cantar aquele refrão, arrepio-me sempre. Assim como
no caso dos Tara Perdida, por exemplo o «Pernas Pr'ó Ar» [n.r.:
começa a cantar a
música]
– oh, estou-me a arrepiar agora, é genuíno!
Sempre foi algo
importante na construção das tuas músicas, logo nestes temas do
«Censurados» – ter ali uma melodia marcante e chamativa?
Sim, sim. Eu sempre gostei muito de punk rock cru, mas também sempre
gostei das vozes a puxar mais para o melódico. Sempre ouvi GBH,
Discharge, The Exploited, mas também bandas como Buzzcocks ou os
Dickies, que são cenas punk, mas em que há outras harmonias na voz.
Já em Kú de Judas, apesar de as músicas serem rápidas, eu puxava
muito por essa melodia. Depois, nos Censurados, claro, os refrões
eram essenciais. É o que bate mais.
E Ramones? Há
pouco já lhes aludiste, mas podes dizer que são a tua principal
influência?
Pois, Ramones é outra história. É o que me fez... practicamente. O
que me fez ser músico, foram os Ramones. Não era só nos Estados
Unidos que nasciam bandas em cada cidade onde eles iam tocar, aqui
também se pensava – espera aí, eu também posso ter uma banda!
Aqui também aconteceu, só para veres.
Por todas essas
razões que falámos, achas que o álbum «Censurados» envelheceu
bem até aos dias de hoje?
Eu sou um bocado suspeito para avaliar isso, mas acho que sim. E a
prova é que esse disco ainda se vende e marcou a vida de muita
gente. Às vezes lembro-me de histórias que as pessoas me contam em
torno do álbum, das letras que continuam intemporais, etc. Uma vez
tive uma conversa com um rapaz que me reconheceu num café. Ele
estava de fato e gravata, dia de trabalho e tal, vira-se para mim e
diz-me – “Vocês mudaram a minha maneira de estar na vida e de
ver as coisas. Vocês abriram-me os olhos”. Contou-me que hoje tem
família, tem filhos, está bem, mas foram as letras dos Censurados é
que o ajudaram a ver as coisas de outra maneira. Fiquei parvo a olhar
para ele! Para mim, são dos melhores elogios que posso ter. É a
melhor influência que podemos ter nas pessoas, ajudá-las a
soltarem-se quando se identificam connosco. Hoje em dia, por exemplo,
vais ao Facebook e vês lá frases deste disco, tipo máximas... São
23 anos que passaram, mas acho que o pessoal não se esqueceu.
Fiquei
agradavelmente surpreendido quando falei com o Samuel e ele me disse
que vocês se reuniram há cerca de dois meses para um concerto aqui
mesmo no Popular Alvalade. Como surgiu a ideia?
A ideia foi a de fazer uma inauguração oficial do Popular, embora o
bar já estivesse aberto. O Samuel propôs-nos se estaríamos numa de
dar um toque, só cinco ou seis temas. “Ya, embora!” É uma coisa
que ainda está na cabeça, as músicas estão cá. O Fred não pôde
vir, mas eu peguei no bacalhau, no baixo. Tivemos um ensaio um dia
antes, pusemos as coisas na batata e fizemos aqui uma
festarola para o pessoal. Ficámos numa de não dizer nada a ninguém,
apenas anunciámos que ia haver surpresa... As pessoas já estavam
mais ou menos à espera que ia acontecer qualquer coisa, mas houve
alguns que foram mesmo surpreendidos na hora.
Qual foi a
sensação?
Foi altamente. Tudo a cantar! Havia lá um careca de barba que 'tava
todo passado da cabeça. [risos, dirigindo-se para Ivo Palitos,
irmão de Samuel, que estava ali por perto] Tocámos só temas do
primeiro e do segundo álbum. Foram: «Animais», «Tu Ó Bófia»,
«Guerra Colonial», «É Difícil», «Srs. Políticos» e a «Coxa»,
se não estou em erro.
Foi uma reunião
episódica, mas se se proporcionar voltar a acontecer no futuro,
acontecerá?
Epá, acho que sim. Somos amigos, não estamos juntos assim muitas
vezes... mas por acaso ultimamente, até tenho estado bastantes vezes
com o Orlando e com o Samuel. Com o Fred, não tanto. Mas, quanto a
isso, é bem possível que venha a acontecer. Nada garantido, mas
talvez sim.
Sem pressões.
Exacto, é mesmo por aí. ´Tá-se bem.
Em memória de
João Ribas [6/05/1965 – 23/03/2014] This Punk's Not Dead
Como já vem sendo tradição nos últimos anos neste blogue, aqui fica meia centena de discos bastante escutados por cá nos últimos doze meses. Ainda caberiam mais uns quantos de valor, mas vamos manter o modelo. Que 2014 seja tão ou mais profícuo nas distintas condições de peso! \m/
> AYREON – The Theory Of
Everything
> AVATARIUM – Avatarium
> CARCASS –
Surgical Steel
> ROTTING CHRIST - Κατά
τον δαίμονα εαυτού
> BLACK SABBATH
– 13
> EXIVIOUS – Liminal
> MOTÖRHEAD – Aftershock
> THE WINERY DOGS – The Winery
Dogs
> IN SOLITUDE – Sister
> YEAR OF NO LIGHT – Tocsin
> DARK TRANQUILLITY – Construct
> MAN MUST DIE – Piece Was Never
An Option
> BLOOD CEREMONY – The Eldritch
Dark
> GHOST B.C. –
Infestissumam
> STEVEN WILSON
– The Raven That Refused To Sing
> SHINING – One On One
> BRUCE SWORD W/ JONAS RENSKE –
Wisdom Of Crowds
> GOD IS AN AUSTRONAUT – Origins
> AMON AMARTH –
Deceiver Of The Gods
> ENTRAILS –
Raging Death
> ULVER –
Messe I.X – VI.X
> DEATH ANGEL – The Dream Calls
For Blood
> DREAM THEATER – Dream Theater
> KADAVAR – Abra Kadaver
> HELL – Curse And Chapter
> WITHERSCAPE –
The Inheritance
> THOUGHT CHAMBER – Psykerion
> IMPERIAL GATES
– The Sound Of Human Fate
>
DAFT PUNK – Random Access Memories
> FILII NIGRANTIUM INFERNALIUM –
Pornokrates: Deo Gratias
71,5
kg. Quase nem dá para acreditar. Ontem, por mera curiosidade e
depois de um daqueles treinos valentes, lembrei-me de saltar para a
balança. Poucas vezes o faço agora mas, há cerca de seis anos, foi
algum excesso de peso que me levou a calçar umas sapatilhas. 89 kg,
concretamente. Da “estranha” ideia à prática foi um passo, ali
em torno da alameda da Fonte Luminosa, em Lisboa, só porque ficava
perto do local de trabalho e tinha algum tempo livre. Gostei tanto
daquilo que levava a vontade comigo aos fins-de-semana, nas visitas à
família em Santarém, com pontuais corridas numa pista de 400
metros. Certo dia, fiz 20 voltas seguidas! Surgiram as provas, o gozo que advém da corrida em grupo, a excitação em poder tirar mais
uns minutos – uns segundos que fossem – aos meus melhores 10 kms, a meia-maratona que pede algo mais... Um dia, hei-de fazer uma maratona, sussurrava uma voz dentro de mim. O que perdi em peso ganhei em mudança positiva na vida, em parte, graças à corrida. Ela
merecia esse desafio. Esse sacrifício tornado prazer.
Há então que treinar para o sonho. A
data de 6 de Outubro obrigou a que tal decorresse durante o Verão,
muitas vezes sob temperaturas altas. A não ser que quisesse ver um
deslumbrante nascer do sol entre o Cais do Sodré e Paço de Arcos,
levantando às 04h00 para começar a correr às 06h00 com o meu amigo
Joost De Rayemaker, como chegou a acontecer. Abnegação, crença e
um obrigatório “tirar partido” da experiência (e seus preliminares) foi como encarei o objectivo. Sem pressões de maior;
dois/três meses de treinos mais ou menos disciplinados e sentia-me
mentalmente confiante. Fisicamente, é sempre uma incógnita. É no
“dia D” que tiramos as dúvidas. No entanto, a semana que lhe
antecedeu trouxe-me alguma ansiedade e poucas horas de sono. Ainda mais porque, a três dias da prova, não tinha resolvida
uma questão pendente com o meu dorsal. Nada como uma ideia magnífica
para retemperar forças energéticas e sossegar demónios: um jantar
do grupo Corrida do Dia, cortesia da Ana Nogueira, na véspera da
prova, com coisas boas para degustar, e estratégias para debater. Mal
chego, colocam-me um copo de vinho na mão, néctar que nos
acompanharia durante o repasto. Falou-se muito de jornalismo e
histórias rocambolescas... e pouco de corridas. Acho que,
inconscientemente, estávamos a evitar tocar no assunto do dia
seguinte. Éramos oito, quase todos estreantes.
O GRANDE DIA
Quatro horas e meia. Dormi quatro
horas e meia!, penso para mim,
mal acordo. Um luxo. São 07h00 e estou bem disposto. Depois
da guerra com o sono nos últimos dias, temi que pudesse mesmo vir a
correr “com directa”. Esta carga na bateria chega para a
concentração e reflexos, vamos agora encher o motor de hidratos de
carbono. Foram vários dias a comer massa, combustível que já não
faz parte deste derradeiro pequeno-almoço. Mas a misturada é tal,
que me vejo a saborear ovo mexido com banana com mel com passas de
uva com flocos de aveia com... Chega! Não é preciso comer muito.
Há abastecimentos no percurso e levas o teu reforço em gel.
Vamos para Cascais. Eram cerca de 08h50 e já todas as
saídas afectadas pelo percurso da maratona estavam vedadas ao
trânsito.
– Depois, como é que eu saio
daqui?! – pergunta-me, meio desconfiada, Júlia, companheira na vida e sempre
presente nisto das corridas. Tínhamos deixado o carro num parque
normalmente usado para provas que fiz a arrancaram também da baía,
como os 20 Kms de Cascais. Ela não se limitava a depositar-me ali e
seguir para a meta em Lisboa; ia estar comigo até à hora de
partida. Era justo que a ajudasse a perceber a melhor forma de sair
da vila. O meu aquecimento começa então já aqui, a palmilhar ruas
em várias direcções e a decifrar o enigma junto dos agentes.
Seguimos depois para a zona da partida e cruzo-me com a malta do
jantar de ontem. Estamos todos mais-que-prontos, o ambiente geral é
animado, mas muito focado também. Já faltam poucos minutos... está
ali o Joost, ainda tenho tempo para uma curta entrevista a passar no
TSF Runners.
– Preparado? – Sim!
Sempre são 42 kms e mais qualquer coisa, está mais calor que em
Dezembro no ano passado... vai ser um desafio. – Tens objectivos pessoais? Sei que
fazes menos de três horas... – Sim, o meu record são 02h54m...
vamos ver o que consigo. (02:52:00, 27º da classificação
final, foi a façanha deste belga dividido entre Portugal e Angola,
fotógrafo de profissão, atleta na adolescência, tendo retomado só
há pouco tempo as pistas, após trinta anos de paragem. Uma
inspiração.) De facto, os smartphones são
coisas fantásticas. O mesmo aparelho que gravou as palavras do Joost
com nitidez de micro quase profissional é o mesmo que levo no braço
para contabilizar a minha corrida, dando-me orientações de tempo.
Bang! Soa bem alto o tiro de partida e,
na área dianteira onde me encontro, consigo ver os principais
atletas africanos a tentarem ganhar, desde logo, posições na frente
do pelotão. Aceno à querida Júlia e sigo em direcção ao Parque das
Nações. Bom, talvez não seja boa ideia pensar já no
destino... A manhã está óptima, há que desfrutar destas ruas no
centro da vila e do momento especial que é correr uma maratona.
Estamos em marcha!
– Os primeiros já devem levar uns 5
minutos de avanço – ouço, de raspão, um senhor de idade comentar
para o colega do lado. Muito "moralizante". Ainda não estavam
concluídos 3 kms de prova. Logo à saída de Cascais havia bastante
gente a apoiar os atletas na estrada, mais do que eu pudesse imaginar
e o ambiente em cima e ao lado do asfalto era descontraído. Demais, até. Cedo percebi que ia, talvez, “muito” rápido. Tendo partido
à frente e levado pelo subconsciente de tanta gente – mesmo assim
– a passar-me, pensamos que vamos, pelo menos, no ritmo planeado;
no nosso ritmo. Errado. É a minha primeira maratona, há por aqui
muita gente experiente e mais rápida, o teu nível é um pouco
mais atrás, constato a
posteriori. Após a primeira saída da Marginal e,
contornado que está o Casino do Estoril, faço a primeira tentativa,
a sério, para saber, afinal, a quantas ia. – “...4 minutes and 58 seconds” – confirmo as minhas suspeitas. Ainda ouço a moça da aplicação
Nike+ a concluir a informação de pace médio naquela fase;
para quem queria fazer os primeiros 10 kms a uma média de 5:25/km
ia, de facto, demasiado rápido. É nestas alturas que pensamos:
tenho de arranjar um Garmin. Ou relógio semelhante. Os dados
na app do telemóvel, a cada quilómetro, costumam ser
suficientes e as contagens são relativamente precisas mas, nesta
manhã, optei por nem levar auscultadores, para absorver toda a
atmosfera da maratona. As passadas audíveis, as palmas e gritos de
alento, as “bocas” e gargalhadas entre maratonistas, a brisa que
ao Tejo soprava, tudo isso era para escutar. Só o aparelho em
“alta-voz” me fornecia alguma informação, mas o ruído era tal
que, raramente, conseguia captá-la toda. Coisas como: – Vamos embora, já só faltam 34! –
essas, ouviam-se bem. Foi a forma como uma senhora na Parede achou que nos podia motivar, frase seguida de umas risadas de quem a
rodeava. – Puxa, tem ali um “8” bem grande
ao pé dela e vai falar no 34 – contesta um corredor ao meu lado,
meio jocoso, meio incomodado por alguém lhe lembrar de quanto falta
para acabar esta saga. Na verdade, ainda nem 1/5 da prova estava
galgada. Mas eis que, pouco depois, dou por mim em Carcavelos.
Correndo ao lado do paredão que frequentemente uso para treinos.
Zona que me é grata até porque serviu, um par de vezes, como
destino de um traçado tão perigoso quanto desafiante: os 15 kms que
o separam da minha casa,
incluindo toda a Estrada de Paço de Arcos.
Por esta altura, o calor ainda não era
complicado e tinha até prescindido do primeiro abastecimento. Ao 10º
km há que aproveitar a água e conferir andamento. 49:50 indicava
ali um cronómetro intermédio. 4 x 10k a este ritmo (5:00/km) +
2k e fazes a maratona antes das 03:30, equacionava comigo uma voz
interior, tão sonhadora quanto irresponsável. Cedo voltei à terra,
pouco depois da Praia da Torre, quando ouço uma cavalgada coordenada
atrás de mim. Era o grupo que ladeava o “balão”, justamente,
das 03:30. Acompanhei-os durante uns minutos, até que a mesma voz,
resignada, me diz – deixa-os ir; se tiveres pernas para os das
03:45 já não será nada mau. Uns metros à frente...
– Força, Nelson! Vais bem. – Esta
voz é real. Mas quem é que me está a conhecer aqui? Era a
Ana. A anfitriã do meeting de ontem. – O jantar estava óptimo! –
gritei-lhe, enquanto ouvia as minhas últimas sílabas ecoarem em
forma de agradecimento. – Isso é que é importante! –
dispara um maratonista ali perto, que não nos conhecia de lado
nenhum. É este o espírito das corridas longas. Somos um grande
grupo de desconhecidos no mesmo barco, com gestos de camaradagem, se
necessário fôr. Segue-se uma segunda saída da Marginal, desta vez
mais extensa, com passagem junto à câmara de Oeiras e retorno com
direito a cruzar-me com algumas caras familiares, uns mais atrasados
e outros mais adiantados. Trocámos alentos e foi bom para fugir a
uma certa monotonia que já se acumulava junto ao rio, trazendo uma
parcela de técnica ao nosso rolamento. Nestas provas é importante
dosear alguma variedade, manter o foco e o ritmo, mas tirar partido
de pequenas excitações ao longo do percurso que nos possam servir
de boosts para não cairmos no tédio. Daí que, o desvio à
esquerda depois de Caxias, bem junto ao litoral, se tenha revelado uma
interessante fase da prova. Estava no mesmo piso que usara
anteriormente para treinos longos e foi óptimo passar por ali
ladeado pelas bandeiras dos países representados naquele pelotão,
algumas hasteadas por jovens voluntários em cima das pedras. Além
do mais, esta escapatória serviu para poupar os atletas à subida da
“curva do Mónaco” ideia a que, acredito, a maioria ficou
agradecida. Pouco depois, percorrido que foi o túnel sob a linha de
comboio na estação da Cruz Quebrada, uma surpresa. Espera,
parece o César... t-shirt amarela da Corrida do Tejo, é ele! De
câmera em punho, o meu irmão fazia por perpetuar a ocasião,
enquanto puxava por mim – Boa! Vais quase no grupo das 03:30!
– Pois, talvez não devesse. Não tinha abrandado muito mais,
entretanto. Mas foi fantástico vê-lo ali e receber mais uma
injecção de determinação para não desiludir aqueles a quem tinha
prometido fazer isto.
Sendo a maratona uma prova quase tão
estratégica quanto física, há muitos factores a ter em conta
durante os seus 42,195 kms. O lado mental tem quase tanto com que se
entreter como as pernas. Além do ritmo, há que ir considerando o
que (e quando) ingerir, não deixar de hidratar mesmo não sentindo
sede, corrigir posições do corpo, etc. No braço direito
transportava uma segunda armband para telemóvel, foi a forma
que encontrei para carregar dois géis próprios para suplementação
nesta prova, uma vez que não me dou nada bem com bolsas à cintura e
anexos semelhantes. O pequeno-almoço tinha sido bem recheado, mais
uma barra energética meia hora antes de partir; não sentia fome,
nem mesmo qualquer tipo de má digestão como, ocasionalmente, me
acontece. Confiando nas recargas e nos abastecimentos sólidos
posteriores, vejo-me indeciso metros antes do abastecimento ao km 17. Há ali banana. É pegar ou largar. Pegar
significa acautelar as reservas de nutrientes e reforço de magnésio;
largar equivale a manter a mesma cadência rítmica e não arriscar
perder o andamento, sobretudo, por obrigar a essa “tarefa hercúlea”
que é a de mastigar. No último momento, mantive-me à esquerda e
não peguei em nada. Nem sequer em água. E ocupar as duas mãos,
então, estava fora de questão. Não foram precisos dez segundos
para me arrepender. O Nelson é assim, indeciso nos piores momentos.
O que vale é que se dá bem a improvisar; tem um qualquer gozo
masoquista quando triunfa na arte do desenrascanço. Aquela,
ninguém comeu. Deduzo eu de uma metade de banana, prostrada no
chão, a pedir que a apanhe, corrigindo assim o erro cometido há
momentos. Nestes desafios não podemos estar com cerimónias, há que
resolver pequenas situações que podem ser decisivas no quadro
final.
– Fuck, está vazia! – exclamo com
mágoa, olhando para uma casca de banana perfeita em tudo... menos no conteúdo. A posição que ocupava no pavimento, dava outra ideia.
– Toma, queres? – ouço alguém,
atrás de mim, que presenciou a cena. Aceitei, de bom grado, metade
(de uma metade) de banana que um comparsa maratonista me deu, mas só
depois de me confirmar que não lhe fazia falta. É deste espírito
que falava há pouco que também se fazem estas experiências. Consta
que, nos trails, todo esse companheirismo ainda vem mais ao de cima.
Nunca fiz nenhum, mas é um dos próximos desafios a que me vou
deixar seduzir.
Verifico que atinjo uma meia-maratona
“confortável”, em 01h47m. Continuo a sentir-me bem e começo a
acreditar naquilo que, na verdade, nunca cheguei a duvidar
seriamente: Isto é para acabar e é para se fazer. Só que a segunda
parte deste jogo, nada teve a ver com a primeira. Não cheguei a
sentir uma verdadeira “parede” – adiante, não considero que
foi uma parede de cansaço que me fez reduzir seriamente o ritmo –
mas, por volta do km 24, chega um inimigo inesperado, daqueles que,
ainda assim, nos pode sempre bater à porta. A dor de burro. Notei
que, nos últimos treinos mais esforçados, este indesejável sintoma
visitou-me. No fundo, é um limitador de esforço, de velocidade, se
quiserem, a dizer-nos que estamos numa mudança acima daquela que
devemos. Tenho sabido como ultrapassar o problema abrandando o passo
e fornecendo mais ar aos pulmões mas, nesta manhã, já em plena
Avenida da Índia, a coisa estava difícil de desaparecer. Enquanto
vou concentrado na solução do problema, pelo canto do olho,
apercebo-me de alguém não totalmente estranho. Olha, é a Luzia
Dias, ali a dar força e palavras de alento à malta. Conhecia-a
de a ver subir ao pódio na prova de 10 kms a que dá nome na zona do
Lumiar, a qual tive oportunidade de fazer por duas vezes. Com uma
exagerada inocência e alguma lata devido ao quase-desespero, convoco
a experiente atleta do Sporting CP para uma consulta de
aconselhamento, logo ali. – Desculpe, como é que se resolve a
dor de burro? – Incline-se para a frente e corra
para cima da dor – responde-me, prontamente, a prestável rapariga
enquanto corria ao meu lado. – Inspire fundo, conte até 4 e
expire. – Obrigado! – Lá fui nos 500
metros seguintes meio curvado quando precisava de usar este truque
para atenuar o desconforto. E não é que a dor desapareceu mesmo?
Voltei ao meu normal, que deveria ter sido o “normal” dos
primeiros quilómetros – 5:25/km. Agora, o calor já se fazia
sentir e de que maneira, dando razão aqueles que mostraram
preocupação no agendamento de uma prova destas, para a primeira
semana de Outubro, a começar às 10h05 da manhã. Pessoalmente, não
foi dramático, pois estava acostumado a correr com temperaturas
relativamente altas, sendo que os óculos e o chapéu foram
fundamentais para atenuar os efeitos da canícula. Mas houve muitos
que não tiveram a mesma sorte (ou preparação?) e, à chegada a
Alcântara, eram já vários os “encostos”, aqui e ali, com
recurso a cuidados médicos, mesmo. Alertas para aproveitar,
praticamente, todos os abastecimentos a partir dali, nem que fosse
para refrescar só a cabeça e o corpo.
O ambiente entre os corredores ainda
era de relativa boa disposição nesta fase, uns bem empenhados em
honrar a sua melhor performance não perdendo energias com nada nem
com ninguém, e outros ainda com força para uma piada. Perto do 30º quilómetro, o pelotão já vai completamente “esfrangalhado”,
atletas “solitários”, separados por 50 metros entre si, adiante
um grupo mais compacto e aquele corredor que ultrapassamos e nos
ultrapassa várias vezes ao longo do percurso. Algo está errado
com o teu ritmo ou com o dele,
penso. Ou com o dos dois. Após Santos, avisto, provavelmente,
o runner com a passada mais esquisita que alguma vez vi. A
descrição mais aproximada será a de uma aranha com andarilhos, com a cabeça em riste. Jovem, previsivelmente estrangeiro e talvez portador de deficiência. Arrastava os passos pelo asfalto com uma audível dificuldade. Bom, também quer fazer uma maratona.
Tem tanto direito como os outros. Espero que consiga, mas duvido,
calculei. Quando passo por ele, cruza-se connosco um transeunte com
um esgar de inquietação na face. Preocupado, atentava naquele
espectáculo.
– É mesmo assim – diz um corredor
ali perto, antes que fizéssemos ou disséssemos alguma coisa. – Ah, é mesmo assim... – reage o
homem, não muito convencido. Também fiquei a matutar naquilo. 100
metros adiante, não resisto em virar-me todo para trás – um
esforço considerável naquela fase da prova – e vejo o rapaz na
mesma posição robótica, mas já imóvel e segurado por três ou
quatro participantes. – Chame uma ambulância! Chame os
médicos ali para trás! – indiquei eu e alguns corredores a um
polícia que logo ali avistámos. Com uma ponta de choque, mas não total
espanto pelo que previra, segui o meu caminho.
À chegada ao Cais do Sodré, novo foco
de apoiantes, daqueles que aplaudem toda a gente e ainda levam um
obrigado, quando temos força respiratória. São importantes
aquelas palavras, mesmo que não sejam para nós. Fazem-nos sentir
que não estamos sozinhos, apesar dos muitos quilometres que
fazemos, entregues a nós próprios. Menos simpática foi, logo a
seguir, a passagem pelo empedrado da Ribeira das Naus, uma violência
para o esqueleto após três horas que, já por si, em terreno plano,
não são pêra-doce. Valeu o chuveirinho lançado pelo carro dos
bombeiros. Seguiu-se o último desvio da estrada principal, com
passagem pela baixa, Restauradores e retorno pela Rua Augusta. Teria sido ainda mais interessante sem turistas a
atravessarem-se à frente, mas acredito que os atletas mais
adiantados não tenham sido sujeitos a uma ligeira gincana, aqui e
ali. É só nesta altura que decido interiorizar que já estou perto
da fase final da prova. Para trás, encarei como novidade e desfrute,
sem pensar na região da meta. O trabalho mental também passa pela
contenção de expectativas.
Tendo já feito o percurso restante em
duas meias-maratonas (da ponte Vasco da Gama, que decorria
paralelamente), consciencializei-me que já só falta mais um
pouco mas, atenção, que a paisagem é monótona e nada está ainda
conseguido. Não abdiquei do gel que nos deram antes de Santa
Apolónia e preparei-me para enfrentar os últimos oito quilómetros. Reparo em cada vez mais
gente a caminhar e, num sentimento misto, dou por mim a pensar que a
maratona se tornou numa moda dentro da moda que são as corridas. O
que é bom, é uma tendência saudável, mas há muito pessoal que
vem para aqui impreparado. A maratona é para se correr, não é para
andar! Digo a mim mesmo, sem ponta de crítica para quem o queria
fazer, mas por esta ou aquela razão, não o estava a conseguir.
Dizia-o a mim mesmo para me mentalizar, naquela fase decisiva. Talvez
o subconsciente o estivesse a esconder do intelecto realista, mas
também já estava a sentir os meus ameaços de... cãibras. Estamos
no abastecimento do km 36 e, com determinação, arranco os gomos à dentada a uma meia laranja sacada
por baixo do viaduto. Cada movimento divergente de uma passada
rectilínea e constante, repercute-se nos gémeos com prenúncio de
um dos músculos “saltar” a qualquer momento. Mesmo assim, não
resisto à tentação de, ocasionalmente, me virar para trás para
saber, quem vem aí? Como estão os outros? Não me sentia
exausto ao nível do tórax como, por exemplo, no final de uma
corrida de 10 kms em que vamos a dar tudo para ganhar mais umas
posições. Aqui, trata-se de um cansaço mais muscular e, à
passagem no entroncamento da TSF, pensei mesmo em trabalho. Porque
não trabalhaste mais as pernas? Talvez seja o ácido láctico
acumulado... Era tarde para lamentações. Havia que chegar ao fim.
Assimilada a “obrigação” de fazer isto a correr, só havia uma
solução: diminuir, consideravelmente, o ritmo. Os últimos cinco
quilómetros foram todos feitos na casa dos 6:00 e qualquer coisa.
Sentia-me um carro com combustível, mas sem embraiagem.
Se parasse, corria o risco de não voltar a arrancar. Se
cedo e caminho para reganhar estabilidade muscular, torno-me num vai-vem entre corrida e passo como estes que vão aqui ao lado e que
estão sempre a alternar posições comigo. Além disso, perderia
“a minha” maratona. Preferi o sofrimento. Preferi o prazer de
tentar.
À entrada no Parque das Nações já
nem penso muito em tempos. Há que fazer uma corrida digna e isso
significa dar o máximo nos quilómetros finais. Claro que, tendo em
conta as circunstâncias, “o máximo” era pouco mais que o mínimo
indispensável para não ter um desaire abaixo dos joelhos. De novo,
os sentimentos mistos. Por um lado, estou quase a fazer uma maratona; é maravilhoso, por outro, é só aquela parte do corpo
que me atormenta. Com os gémeos de outro gajo, fazia esta recta
toda a abrir! A recta é a Av. Dom João II, penúltima rua longa
antes da meta. Aqui, já preparava o corpo mentalmente para o
empedrado da Alameda dos Oceanos, a última dificuldade, que decidi
substituir, em termos romantico-cerebrais, por um fofo tapete
vermelho. Era merecido. E também era mais fácil imaginar do que
sentir. Última curva, deixo o Pavilhão Atlântico para trás, passo
por um companheiro a coxear sem desistir... serei eu o próximo?Não! Isso das cãibras, se calhar, nem está no limite. Pensa só
que consegues. Aliás, nos últimos três quilómetros, registo
uma melhoria gradual de tempos. Faltam 300 metros, ainda dá para acelerar um bocadinho. Quem te esperou estas horas, merece ver-te
chegar “fresco”. E sei que estão preocupados. Recta da
meta... onde estão? Olho para a direita – ali estão
eles! Levanto os braços e agradeço o apoio da família sentindo
uma faixa imaginária a acariciar-me o peito. Nesse mesmo instante, o
esticão que dei ao corpo precipita a iminência de me prender o
músculo da perna direita, mas consigo “segurá-lo”. 03:54:38,
tanto? Não sejas estúpido... acabaste de concluir a tua primeira
maratona, não ligues ao tempo. Não foi mau, até!
Não, foi
tudo bom.
AMANHÃ
Amanhã é dia de treino longo. Uns 25
kms, no mínimo. Os sonhos concretizam-se e alimentam-se. Sonhos que
requerem preparação, mas que revivemos as vezes que quisermos. As
que pudermos, munindo-nos das lições aprendidas na primeira
experiência. 23 de Fevereiro é logo ali ao virar da esquina e tenho de tratar da inscrição. É a data da Maratona de Sevilha 2014.
42/42 é um singelo relato de alguém
que decidiu tentar a sua primeira maratona aos 42 anos de idade.
Título inspirado em “50/50”, livro em que o ultra-maratonista
Dean Karnazes conta a odisseia de fazer 50 maratonas, em 50 dias
seguidos, pelos 50 estados norte-americanos.