Ainda te lembras bem do início dos
Censurados? Foi uma boa altura desta tua vida com bandas?
Foi. É mesmo
capaz de ter sido a mais importante. Foi o maior degrau que subi na
minha carreira, vá lá, até à altura. E, se calhar, até hoje.
Estava nos Kú de Judas que nunca chegaram a gravar... o que anda por
aí, é ao vivo. Depois fui para a Alemanha e, quando voltei, vinha
com ideias diferentes de como fazer as coisas. Comecei por falar com
o Paulo Ampola, que era baixista dos Crise Total, fizemos umas
músicas e falaram-me do Samuel que também parava aqui no Jardim dos
Coruchéus. Fui ter com ele, aceitou logo e, nessa fase inicial, o
guitarrista era o Tiago, um amigo nosso. Aí, começámos a ensaiar,
praticamente todos os dias, na casa da minha mãe e, de um dia para o
outro, virámos músicos. Em vez de estarmos no jardim a beber
bejecas, íamos para o meu quarto beber as bejecas e tocávamos!
[risos]
Chegaram a tocar no RRV com essa
primeira formação dos Censurados mas, até gravarem o álbum, houve
mais fases. Quais foram os primeiros temas a ficarem prontos?
As primeiras
malhas foram feitas ainda com o João Pedro Almendra. Ele estava nos
Peste & Sida mas, na altura, tinha saído. Como eu sempre tive
aquela fisgada do João Pedro, convidei-o para cantar connosco e os
«Srs. Políticos» e «É Difícil» ainda são letras dele. Ainda
fez três ou quatro ensaios mas, depois, os Peste estavam a gravar e
ele teve de voltar para eles. Mais uma vez fiquei eu na voz; já nos
Kú de Judas tinha acontecido isso com ele – saiu para os Peste &
Sida e fiquei eu a cantar nos Kú de Judas.
Portanto, a tua ideia inicial nunca
foi a de ser vocalista?
Não. Eu sou
vocalista, praticamente, por causa do Autista. [risos] Não
desafinava e, como era eu que fazia as músicas, sabia cantar tudo e
tornava-se mais fácil. Ele saía, mas ficava lá eu e as coisas não
acabavam.
Em Censurados sempre tocaste
guitarra, apesar de um vídeo ou outro em que apareces sem ela.
Sim, em estúdio,
sempre toquei guitarra. Só em Tara Perdida, a partir de 2002, quando
chamámos o Ganso para a banda, é que decidi dedicar-me à voz a
100%.
Mas voltando aquela fase em que
regressaste da Alemanha. Depois, não demorou muito tempo até terem
material pronto para o álbum dos Censurados...
Sim, mas atenção
que quando vim da Alemanha, eu não queria acabar com os Kú de Judas.
Eles entretanto acabaram e eu fiz outro projecto. A ideia que trazia
era a de fazer uma banda mais consistente, com mais trabalho. Kú de
Judas não deu e arranquei mais a sério para Censurados.
Entretanto, mais à frente, junta-se
a ti e ao Samuel, o Orlando Cohen e o Fred Valsassina.
Pois, isto porque
o Tiago era um bocado tresloucado, não estava assim muito na nossa
onda. Ainda chegámos a tocar com o Paulo, mas ele tinha um trabalho
que não lhe permitia estar numa banda e, então aí, é que falámos
com o Fred que também parava aqui nos Coruchéus. Tínhamo-lo visto a
tocar baixo, tocava blues com o Pedro Abreu, tudo ali na batatinha
e convidámo-lo. O Orlando surgiu porque saiu dos Peste & Sida.
Precisávamos de um guitarrista com alguma urgência e integrou-se
rapidamente connosco, até porque estava dentro da mesma onda. O
primeiro concerto desta formação foi a 2 de Setembro de 1989. Mas
Censurados começou em 1988, no Verão.
Há mais de 25 anos. Quais são as
grandes diferenças que encontras nas bandas de então e do tempo
presente?
Hoje em dia, as
bandas preocupam-se mais em fazer as coisas bem. Mostrar ao público
bom trabalho. Dantes, havia muito a onda do bora, 1, 2, 3, 4 e tá
a andar de mota! Não quer dizer que não fosse fixe, o espírito
era diferente, era assim... Penso que, a esse nível, as bandas em
Portugal evoluíram bastante. Começaram a preocupar-se mais com os
ensaios – o ensaio é fundamental. O pessoal às vezes cagava um
bocadinho nisso, havia aquela pressão de ensaiar uma vez por
semana... o pessoal queria era dar concertos! Hoje há outra
preocupação a todos os níveis, desde as gravações à promoção;
antigamente era tudo um bocado ao molho. Era a onda da adolescência,
a rebeldia a sair toda para fora e, mesmo na pós-adolescência, a
loucura ainda continuava!
Olhando hoje para os três discos, é
do «Censurados» que continuas a gostar mais?
É aquele pelo
qual tenho mais carinho. Antes de mais, foi o meu primeiro disco.
Para eles também foi e, por isso mesmo, toca-me particularmente. É
aquele que tem mais de mim, já que comecei por fazer as músicas.
Com a entrada do Orlando e do Fred, o trabalho passou a ser feito de
outra forma e o «Confusão» já traz outros elementos e revela mais
trabalho. E o «Sopa», para mim, foi um bocado desilusão, mesmo a
nível de produção. Não o teria feito daquela forma, se fosse
hoje. Esse álbum é um pouco diferente. Já tem muitas coisas de
heavy metal à mistura, não quer dizer que isso seja mau porque
sempre tivemos uma costela metal, seja pelo Samuel, seja porque eu
sempre gostei de algumas coisas. O Fred também trazia algumas cenas
assim. Nessa altura, o Orlando ouvia Metallica! O «Sopa» ficou
diferente dos outros, fomos procurar outras coisas, o que eu acho
bom, para não estarmos sempre a fazer o mesmo. OK, tocamos punk
rock, mas os músicos não querem estar sempre a fazer a mesma
coisa... São muitas horas que estão ali, penso que há um grande
trabalho dos músicos em si, mas foi quando percebemos que as ondas
musicais de cada um estavam a ficar bastante diferentes.
Foi o princípio do fim?
Sim, talvez tenha
sido. Ainda fizemos em '93 uma tournée com o «Sopa» e foi
excelente. Demos inúmeros concertos; apesar de tudo, foi uma altura
muito boa para a banda.
Mas quais considerarias os anos de
ouro dos Censurados?
1991 e '92. Quando
saiu o «Confusão» estava toda a gente interessada na banda.
Lembro-me que fizemos o lançamento do álbum na Zona+. Como tínhamos
feito a tour com os Xutos, ficámos mais conhecidos a nível
nacional, as pessoas que nos viram nos Xutos, pelos vistos, gostaram
e, no ano seguinte fomos quase aos mesmos sítios onde tínhamos ido
com eles, mas já em nome próprio.
Dessa altura
inicial, de que histórias marcantes ainda te lembras? Aqueles
episódios próprios de uma banda a emergir e que ainda te suscitam
um sorriso hoje.
Há
bastantes. Com Censurados houve vários, na estrada, por exemplo...
Lembro-me da primeira vez que fomos a França, fomos de carrinha ao
festival Printemps de Bourges. Os Ramones tocavam lá dois dias
depois de nós, mas tivemos de ir para Paris e não vi Ramones nessa
altura. Já tinha visto em 1981, felizmente, foi fixe ainda vê-los
em puto. [risos] Foi em Cascais, lembro-me que fizeram dois dias, 24
e 25 de Maio, e eu vi-os a 25. Mas voltando a França, tivemos de
fazer Paris-Lisboa na mesma carrinha, bazámos numa segunda-feira e
tínhamos concerto cá na quarta-feira. A dormir na carrinha, todos
rotos, chegámos mesmo a tempo do soundcheck.
Fazia
anos nesse dia e ainda fomos à Feira Popular jantar e demos um
grande concerto! Era numa tenda de circo da alameda da cidade
universitária, aquilo estava cheio, esquecemos o cansaço e foi uma
cena memorável. A minha mãe foi de Mini com a mãe do Fred!
Lembro-me de as ver com dois seguranças ao lado e elas – “nós
não precisamos!” [risos] A minha mãe foi a muitos. Ainda chegou a
ir a concertos de Tara Perdida.
Atrás disseste que ensaiavas em casa. Sempre tiveste o apoio da família?
A minha mãe é a pessoa mais importante da minha carreira musical.
Foi ela que me pôs nisto, praticamente. Deu-me todo o espaço para
fazer isto. Não era qualquer tipo de entrave, antes pelo contrário.
Ela dizia mesmo ao pessoal – “vocês têm de ensaiar porque, sem
ensaios, ninguém faz nada”. Às vezes comentava que gostava muito
da melodia daquela... “depois, estragam tudo”. Claro, era quando
vinha o barulho! [risos] Participava bastante, mas deu-me todo o
apoio por abrir as portas para poder tocar lá em casa. Às vezes,
não tinha trabalho, era ela que me ajudava e isso facilitou a minha
vida quando foi preciso.
A ela, deves
bastante?
Tudo. Posso mesmo dizê-lo. E, quando digo tudo, é porque consegui
ser aquilo que sempre sonhei. Ela deu-me isso. O resto, claro, é o
fruto desse trabalho que ela impulsionou em mim. Eu acho que havia
qualquer coisinha na minha mãe, que lhe dizia que não havia nada a
fazer. [risos] Há aqueles pais que entram naquela – “ah, agora
tens de ir trabalhar” – mas ela viu que eu sempre trabalhei em
teatro, era técnico de teatro, fazia som e luz, fazia digressões de
teatro... Aliás, se não fosse músico, estou convencido que hoje
andaria nessa vida, até porque era uma profissão de que eu gostava
bastante. Cheguei a ser convidado para o Teatro Aberto, como técnico
de luz definitivo, mas era incompatível fazer as duas coisas. Se
tinha concerto e peça no mesmo dia, não podia estar nos dois sítios
e tive de optar. Uma vez, num concerto dos N.A.M., foram-me buscar à
Comuna a toda a velocidade, fomos quase a 200 para o Fogueteiro e
acabámos por não dar o concerto! Até 1990 ainda fiz as duas
coisas, mas quando chegou a tournée com os Xutos &
Pontapés, tive mesmo de tomar uma decisão – ou teatro, ou música.
E a história do
«Não», quando a tocaram pela primeira vez num concerto no Rock
Rendez-Vous. Consta que a letra nasceu aí mesmo, espontânea!
Foi
ali mesmo, no palco. A música não tinha letra, só dizia “não”...
tipo, tá-ne-ná-ná-não!,
tá-ne-ná-ná-não!
A música tinha a estrutura feita, mas lembro-me de perguntar ao
Orlando se a íamos mesmo tocar... E ele – “claro!”, “epá,
mas isso não tem letra.”, “desenrasca-te!” E eu calei-me.
'Bora!. Foi a partir do que ouvi gravado no concerto do RRV, porque
eles gravavam os espectáculos todos, é que fiz a letra do «Não».
Coisas como não
consigo compreender o que é que eu ando p'rá aqui a fazer
saíram-me no momento. Há para lá coisas que não aproveitei como
palavras tipo feisy,
palavras que não existem... mas estava afinadinho e seguiu.
Letras que, é
incrível, se mantêm hoje actuais, desde a «Angústia» aos «Srs.
Políticos». Isto foi no tempo do cavaquismo e...
Olha, nem sei, porque eu ligava tanto a isso, que nem sei quem era o
parvalhão que lá 'tava!
Seja como for,
está tudo igual. [risos] Concordas que são letras que podiam servir
para canções de hoje?
Sim, não és o único, muita gente diz isso. Às vezes, quando está
a passar Censurados em algum lado, há pessoal que vem ter comigo a
dizer-me que esta ou aquela música é intemporal. Há coisas que,
admito, têm vinte e tal anos e estão actualíssimas. Podiam ter
sido feitas hoje.
No caso do «Animais», por exemplo, ainda sentes que toda a gente olha p'ra mim, parece que me querem comer?...
Já
não olham tanto. [risos] Mas ainda olham. Assim sempre
desconfiados... este povo é muito desconfiado. Já reparei que, se
estiver de pijama – num hospital, por exemplo – a pessoa está a
falar comigo, está tudo bem. Quando me começo a vestir, a reacção
muda! Depois vêem-me a espetar o cabelo, a pôr-me todo de preto e
ficam naquela – “mas quem é este gajo?!” Há quem veja duas
pessoas diferentes ali. Na altura dos «Animais» era mesmo a onda de
punkalhada e tal. Desde puto que uso o cabelo espetado, quem usava
moicano era o có-co-ro-có-có,
claro que o pessoal nem ligava, estávamo-nos bem era a cagar para
isso. Era tipo – quero é que te vás foder, eu ando como eu
quiser. É um dos temas marcantes do álbum, sem dúvida. Mas também
o é, por exemplo, a «Guerra Colonial». Há refrões que me tocam
particularmente, de todas as cenas que já gravei. Essa é uma das
malhas que me dá uma sensação, pura e simplesmente, espectacular.
Quando começo a cantar aquele refrão, arrepio-me sempre. Assim como
no caso dos Tara Perdida, por exemplo o «Pernas Pr'ó Ar» [n.r.:
começa a cantar a
música]
– oh, estou-me a arrepiar agora, é genuíno!
Sempre foi algo
importante na construção das tuas músicas, logo nestes temas do
«Censurados» – ter ali uma melodia marcante e chamativa?
Sim, sim. Eu sempre gostei muito de punk rock cru, mas também sempre
gostei das vozes a puxar mais para o melódico. Sempre ouvi GBH,
Discharge, The Exploited, mas também bandas como Buzzcocks ou os
Dickies, que são cenas punk, mas em que há outras harmonias na voz.
Já em Kú de Judas, apesar de as músicas serem rápidas, eu puxava
muito por essa melodia. Depois, nos Censurados, claro, os refrões
eram essenciais. É o que bate mais.
E Ramones? Há
pouco já lhes aludiste, mas podes dizer que são a tua principal
influência?
Pois, Ramones é outra história. É o que me fez... practicamente. O
que me fez ser músico, foram os Ramones. Não era só nos Estados
Unidos que nasciam bandas em cada cidade onde eles iam tocar, aqui
também se pensava – espera aí, eu também posso ter uma banda!
Aqui também aconteceu, só para veres.
Por todas essas
razões que falámos, achas que o álbum «Censurados» envelheceu
bem até aos dias de hoje?
Eu sou um bocado suspeito para avaliar isso, mas acho que sim. E a
prova é que esse disco ainda se vende e marcou a vida de muita
gente. Às vezes lembro-me de histórias que as pessoas me contam em
torno do álbum, das letras que continuam intemporais, etc. Uma vez
tive uma conversa com um rapaz que me reconheceu num café. Ele
estava de fato e gravata, dia de trabalho e tal, vira-se para mim e
diz-me – “Vocês mudaram a minha maneira de estar na vida e de
ver as coisas. Vocês abriram-me os olhos”. Contou-me que hoje tem
família, tem filhos, está bem, mas foram as letras dos Censurados é
que o ajudaram a ver as coisas de outra maneira. Fiquei parvo a olhar
para ele! Para mim, são dos melhores elogios que posso ter. É a
melhor influência que podemos ter nas pessoas, ajudá-las a
soltarem-se quando se identificam connosco. Hoje em dia, por exemplo,
vais ao Facebook e vês lá frases deste disco, tipo máximas... São
23 anos que passaram, mas acho que o pessoal não se esqueceu.
Fiquei
agradavelmente surpreendido quando falei com o Samuel e ele me disse
que vocês se reuniram há cerca de dois meses para um concerto aqui
mesmo no Popular Alvalade. Como surgiu a ideia?
A ideia foi a de fazer uma inauguração oficial do Popular, embora o
bar já estivesse aberto. O Samuel propôs-nos se estaríamos numa de
dar um toque, só cinco ou seis temas. “Ya, embora!” É uma coisa
que ainda está na cabeça, as músicas estão cá. O Fred não pôde
vir, mas eu peguei no bacalhau, no baixo. Tivemos um ensaio um dia
antes, pusemos as coisas na batata e fizemos aqui uma
festarola para o pessoal. Ficámos numa de não dizer nada a ninguém,
apenas anunciámos que ia haver surpresa... As pessoas já estavam
mais ou menos à espera que ia acontecer qualquer coisa, mas houve
alguns que foram mesmo surpreendidos na hora.
Qual foi a
sensação?
Foi altamente. Tudo a cantar! Havia lá um careca de barba que 'tava
todo passado da cabeça. [risos, dirigindo-se para Ivo Palitos,
irmão de Samuel, que estava ali por perto] Tocámos só temas do
primeiro e do segundo álbum. Foram: «Animais», «Tu Ó Bófia»,
«Guerra Colonial», «É Difícil», «Srs. Políticos» e a «Coxa»,
se não estou em erro.
Foi uma reunião
episódica, mas se se proporcionar voltar a acontecer no futuro,
acontecerá?
Epá, acho que sim. Somos amigos, não estamos juntos assim muitas
vezes... mas por acaso ultimamente, até tenho estado bastantes vezes
com o Orlando e com o Samuel. Com o Fred, não tanto. Mas, quanto a
isso, é bem possível que venha a acontecer. Nada garantido, mas
talvez sim.
Sem pressões.
Exacto, é mesmo por aí. ´Tá-se bem.
Em memória de João Ribas [6/05/1965 – 23/03/2014]
This Punk's Not Dead
Grande João,
ResponderEliminarFaz parte do meu imaginário o concerto com NAM e com aqueles idiotas Skins os Kagalhões de Aveiro no Rock Rendez Vouz.
E Depois no Parque do Elétrico.
Altamenteeeeeee.
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