sábado, 18 de dezembro de 2010

2010

A recorrente dicotomia "os melhores" vs. "os que mais gosto". O resultado desse pacífico confronto este ano dá qualquer coisa como isto.


1 – ENSLAVED – Axioma Ethica Odini
2 – SHINING – Blackjazz
3 – ORPHANED LAND – The Never Ending Way Of The ORwarriOR
4 – HIGH ON FIRE – Snakes For The Divine
5 – ANATHEMA – We're Here Because We're Here
6 – IHSAHN – After
7 – FLESHWROUGHT – Dementia/Dyslexia
8 – INTRONAUT – Valley Of Smoke
9 – TRIPTYKON – Eparistera Daimones
10 – DEFTONES – Diamond Eyes
11 – HELSTAR – Glory Of Chaos
12 – BLACK COUNTRY COMMUNION – Black Country
13 – KILLING JOKE – Absolute Dissent
14 – ROTTING CHRIST – Aealo
15 – OVERKILL – Ironbound
16 – FORBIDDEN – Omega Wave
17 – SOLUTION .45 – For Aeons Past
18 – GHOST – Opus Eponymous
19 – ZOROASTER – Matador
20 – SLOUGH FEG – The Animal Spirit

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

199(9) – ODISSEIA NO AÇO!

Completa-se este mês a primeira década do Séc. XXI. Foram dez anos que já nos deram imensas coisas boas em distintos estilos de peso, além de que será aliciante conjecturar sobre o que os desconhecidos decénios seguintes nos possam brindar. E a década seguinte. E a outra. E em 2040, como será o metal? Não duvido que perdure porque na alma musical humana subsiste algo de mais orgânico e genuíno que qualquer “compositor”-robot de tecnologia padronizada ou correntes “criativas” corporativistas. Isso é conversa para o futuro, hoje importa aqui falar do passado.

Quando lançamos um olhar sobre os anos 80, uma toada de respeitável nostalgia se instaura. A década do verdadeiro espírito, dos grandes álbuns, do emergir de bandas e estilos que nesse período se glorificaram por si só. E se recuarmos à genialidade inebriada dos anos 70, esse respeito toma proporções de endeusamento. Já para não falar nos embrionários anos 60 e em patriarcas como Jimi Hendrix. Mas… e então, os nineties?! É que é “só” a década em que a escultura ganhou traços de requinte. Muitas das teses lançadas nos anos anteriores atingiram, neste período, o auge do seu primor, obra de uma geração muito esclarecida no modo como exorta sentimentos e labora instrumentos.

Do encantamento desesperado de uns Anathema, My Dying Bride, Sentenced ou Paradise Lost, à efervescente emergência do black metal escandinavo e de bandas como Darkthrone, Immortal, Mayhem (ou a facção mais melódica criada por Cradle Of Filth ou Dimmu Borgir), passando pela ânsia instigadora de uns Fear Factory, Pantera ou Machine Head, os anos 90 já se fazem de um indelével pedaço de história. Foi também na década transacta que floresceram importantes movimentos death metal; na Florida, pelas mãos de entidades referenciais como Morbid Angel ou Death, na Europa, através de uns visionários Carcass ou At The Gates. Injectou-se mais melodia e mais peso, e popularizaram-se nomes como In Flames, Dark Tranquillity ou Children Of Bodom. Enunciavam-se propostas avantgarde com Arcturus ou Opeth a induzirem ao metal uma dose de inteligível energia. Espaço e tempo também houve para o ressurgimento do heavy metal mais tradicional e do (re)nomeado power metal com o aparecimento de uns Hammerfall ou Nightwish. O stoner rock ou o doom reinventado dos Cathedral também trouxe à cena uma saudável brisa de vitalidade que, em última análise, chega até ao experimentalismo de uns Sunn 0))). No capítulo hard rock, é que a década não começou nada bem, vitimizado pelo aparecimento do grunge e da tomada de simpatias por parte de uns Nirvana ou Alice In Chains. Mas também aqui as hostes menos extremas se souberam reerguer fazendo da década transacta um período de aprazível desfrute para, praticamente, todas as tribos da civilização pesada.

Por vezes paira a ideia de que “agora é que é bom” ou “nos anos 80 é que está tudo”. Não esqueçamos, portanto, os memoráveis anos 90. Afinal, estão aqui tão perto. Dentro de dias, ainda antes de 2011, cá estaremos para vigilar o relógio do aço. Sem eufemismos.

TP IV: BELIEVER - Dimensions

Muitas vezes, exasperamos pelas razões que levam determinada banda a cessar funções. É-nos difícil aceitar que tenham findado após “aquele álbum” excepcional, quase perfeito. É precisamente na obtenção desse máximo desígnio musical que reside o fim de operações; já não há estímulo para ir mais além.

Poucos meses após o lançamento de “Dimensions”, os norte-americanos Believer compreenderam que não haveria muito mais caminho a trilhar no seu thrash progressivo, de ramificações clássicas e pioneirismo operático no metal. São múltiplas e distintas as variações estilísticas deste terceiro álbum do grupo, mas só uma audição no seu todo fornecerá uma ideia da singularidade deste trabalho no espectro musical, inclusive na própria discografia dos Believer. A banda da Pensilvânia começou por se notabilizar na estreia de 1989, “Extract From Reality”, ao sugerir outras dimensões ao thrash da Bay Area, roçando laivos de death metal e arriscando tecnicismos pouco comuns na altura, mas é com “Sanity Obscure” que dá nas vistas, a sério. Três anos depois, “Dimensions” surge como um álbum à parte. A raiz thrash fundamenta a base criativa destes 52 minutos, mas sobre ela assentam muitas camadas que nada têm a ver com o estilo e que, em conjunto, perfazem aquele composto especial que forte impacto causou na altura (nem tanto assim, senão não seria um Tesourinho) e que, quinze anos depois, se mantém proeminente.

A verdadeira pérola deste trabalho está em “Trilogy Of Knowledge”, uma sequência de quatro peças em vinte minutos, num exercício de música erudita com metal, pouco visto até aos dias de hoje. Os instrumentos de cordas operam num registo minimal/progressivo de notável envolvência, imiscuídos da sedutora soprano que é Julianne Laird, bem antes de todos os Nightwishs que se seguiram. Em mágica sobreposição, a voz ríspida de Kurt Bachman, uma espécie de John Tardy mais ligeiro, a assentar que nem uma luva e de belo efeito aestético. O guitarrista/vocalista é a alma dos Believer, mas neste disco em que funcionaram como trio, não esquecer a notável bateria de Joey Daub e, mais ainda, o providencial baixo tocado por Jim Winters. A intro e os três movimentos da “Trilogy Of Knowledge” constituem apenas a parte finaldo álbum, que principia com um sinistro “Gone” e que tem pelo meio a serenidade pulsante de “Dimentia” e o thrash metal (quase) puro de “Singularity”. Quanto à filiação religiosa da banda, não é nada que importe muito para o fascínio artístico aqui obtido. Se a trilogia de fecho versa sobre a história de Cristo, outras letras há por aqui que evocam filósofos como Sartre ou Freud, sendo o álbum um ensaio sobre o modo como a ciência tomou conta do mundo.

Pela própria abertura estilística na música que concebem, os Believer serão uns crentes não dogmáticos e estranho não será o facto de Bachman ter hoje como via profissional a bio-medicina. Explorando igualmente estados de mente mais ou menos senis, este álbum surge salpicado de soundbytes de filmes como “O Exorcista III” ou “Hellraiser II” que, a par de outros sons samplados pela banda em estúdio, gera um efeito psicótico... quanto mais não seja, pela obsessão de o voltarmos a ouvir mais uma vez. E mais uma vez. As harmonias de guitarras também são qualquer coisa de magistral, guiando as estruturas próprias deste álbum para direcções de imprevisível deleite. Apesar de ainda algo obscuro, este álbum foi recentemente reeditado e os Believer tiveram a bela ideia de reunir a banda para o álbum «Gabriel», lançado em 2009. Razões mais que propensas para que, quem não as conhece, entre nestas dimensões. Acreditem.

domingo, 21 de novembro de 2010

MANUAL ESCOLAR – VERSÃO MMX

Nesta terceira alocução deseufemística não há dogmas a adoptar ou anátemas a excomungar. Não se pretende a exortação deste ou daquele sujeito em detrimento doutra ou aqueloutra forma de arte. Quer-se, só e apenas, estabelecer paralelismos entre diferentes conjunturas espacio-temporais tendo um comum objecto de análise – a música extrema.

Vai dando para depreender que, enquanto houver viabilidade acústica e ouvidos receptivos, o metal em sentido lato, terá uma longevidade infinita. Também já se percebeu que muitos dos seus sub-géneros são epifenómenos, condenados a uma efémera existência, alguns por culpa própria de uma diminuta margem de progressão criativa, outros vítima de conjunturas socio-trendy. O nu-metal foi um desses casos, o próprio grunge também, o metalcore tende a um destino idêntico. No entanto, por estranho que possa parecer, é justamente esta intermitência de estilos – e a antropofagia reinante que permite que cada nova tendência degluta a anterior – que funciona como elemento catalizador da música extrema em si, possibilitando uma regeneração do rock duro e do metal em geral.

Serve isto para fundamentar que, por muito inócuas, desinspiradas, enfadonhas, repetitivas, facilitistas, enervantes, desnecessárias, oportunistas, ruidosas, fastidiosas ou inconsequentes que sejam algumas bandas de metalcore, scremo, emocore, noisecore, post-metal, sludge metal, deathcore ou mathcore [e são], outras serão [e são, também] a panaceia do som de peso e decisivas entidades refrescantes com esboços de novas perspectivas artísticas e úteis forças de desbloqueio criativo. Se o caro leitor é purista ao ponto de não tolerar um acorde que seja da new-school, estando-se pouco borrifando para o suposto bem que tais bandas auguram ao metal, tem sempre a alternativa de encarar esta vaga como uma boa razão para que a facção de bandas assumidamente trve se aplique e veja aqui uma motivação para responder em bom estilo tradicional. Sem eufemismos. Entre margens tão extremadas, não consigo tomar partido. Fico ali, a navegar descontraidamente no vasto rio que separa ambas as pontas, numa imensa corrente onde desagua o old-school e o avantgarde, o clássico e o moderno, o reconhecido e o promissor. No fundo, nas mesmas águas onde a maioria de vocês remam, desde que não sejam “putos obcecados apenas pelas novas ondas” ou “fundamentalistas do underground mais negro que a cegueira”.

Ainda assim, encontro um refúgio mais familiar na margem mais metal e menos core. É que, na outra, são tão difusos alguns comportamentos e idiossincrasias, que me levam à descrença, ainda para mais quando se começa a esgotar esse pulmão de ar fresco musical. Algo não bate certo quando as marcas da roupa que se vestem em palco passam a ter mais importância que as marcas dos instrumentos que se “tocam”. Algo não se coaduna com os pressupostos do rock ‘n’ roll quando determinados estereótipos se aproximam intencionalmente do mainstream mais imediatista, nesta que devia ser uma contra-cultura resistente e, nunca, resignada. Algo não convence quando (numa sociedade abastada onde é mais fácil gravar um disco que salvar uma vida) não há uma razão aparente para o culto da lamúria, mas esses mesmos discos aparecem cheios de berreiros inconsoláveis. E imperceptíveis, mesmo que quiséssemos ajudar.

Seja como for, o problema não está tanto no conteúdo, mas mais na forma. A produção tomou o regime de série e cada vez é mais difícil distinguir entre peças de fruta normalizada. A inusitada oferta de bandas, editoras e digressões metalcore e afins vai encontrar um público identificável e, se é significativamente quantitativo, isso é mais um sintoma de que as sonoridades extremas se vão massificando e agregando mais e mais simpatias por parte da população mundial. O que é positivo. Há então estilos que se evaporam, entra-se na fase da regeneração, novas comunidades passam a gostar de ouvir uma guitarra distorcida, um novo punhado de bandas entra para a galeria dos notáveis… 

…Onde constarão sempre nomes como Black Sabbath, Iron Maiden ou Pantera…

(texto originalmente escrito em 2006, mantendo-se (quase) actual, na perspectiva do autor)

TP III: SANCTUARY - Refuge Denied

Por vezes, há pequenos acontecimentos ou situações que nos levam a soprar o pó dos escaparates, para vermos se “ele” ainda lá está. E fazemo-lo inconscientemente, quase como se a memória tivesse dedos com vontade própria. Claro que está. Os tesourinhos estão sempre bem guardados.

Viagens no tempo num disco rígido mental movido a espiras, sem espaço (senão utópico) para .mp3; viagens suscitadas por happenings tão triviais quanto o ressurgimento do thrash metal - um disco 'novo' de Nevermore a sair em breve, alguém que recorda essa grande versão de Jefferson Airplane… Quase sem darmos por isso, o cobalto de "Refuge Denied" cobre-nos as mãos. E já não é a primeira, nem a segunda vez, este mês. O debutante dos dois álbuns dos Sanctuary impôs-se como um dos melhores trabalhos de peso intenso no final do profícuo ano de 1987 colocando, desde logo, os olhos e ouvidos do mundo heavy/power em Seattle que já gerara colossos (na altura) como Queensrÿche ou Metal Church.

Para muitos, este período da vida musical de Warrel Dane e Jim Sheppard constitui “apenas” os primórdios de Nevermore, mas o quinteto – e, sobretudo, este magnífico álbum de estreia – são muito mais que isso. É aqui que consta um dos melhores temas de sempre (não é exagero) do metal enérgico, "Battle Angels", cuja voz de Dane começa logo por se impor como qualquer coisa “do outro mundo”. O refrão “You’ll all fall on your knees” ecoa, ainda hoje, como um perpétuo grito de guerra, assim como entronizado parece um álbum como "Refuge Denied", tais são os argumentos nesta produção de Dave Mustaine que descobrira a banda, rendido que ficou a uma demo por eles entregue. Warrel Dane nunca mais cantou assim, só a espaços no sucessor "Into The Mirror Black" e muito parcamente em Nevermore, adoptando tons mais graves, sugeridos no tema de fecho deste álbum, "Veil Of Disguise". Além disso, e como tem vindo a desenvolver magistralmente até hoje, as suas letras são muito mais que versos para estender voz; são de uma profundidade notável, com especial brilhantismo em "Ascension To Destiny".

Com elementos de heavy metal num registo vocal que ainda transporta muita inspiração de Rob Halford, a primeira colecção de material dos Sanctuary pertence aquela gloriosa fornada de US power metal em meados da década de ’80, onde já despontava uma urgência thrash, aqui mais notória num tema como "Termination Force". Do lado sinistramente melódico temos "Die For My Sins" e essa soberba versão de "White Rabbit", com direito a carismática intro do próprio Mustaine. O som dos Sanctuary – e, consequentemente, dos Nevermore – sempre teve uma ligação umbilical com uma certa obscuridade melancólica, que pode ser enfatizada num tema como "Sanctuary". Jim Sheppard que, embora muitos não saibam, fora o primeiro baixista dos Alice In Chains, também deixa, desde logo, a sua marca de consistência rítmica envolvente nesta que foi a primeira de muitas experiências de estúdio em parceria com Warrel, até hoje. O compositor da maioria das faixas é Lenny Rutledge que, com Sean Blosl, formava a criativa dupla de guitarristas, ainda assim, inferior ao espantoso Jeff Loomis, que viria a completar a derradeira formação dos Sanctuary, em 1991.

Ao lote de notáveis que começa em Dave Mustaine – embora a sua opaca produção não esteja entre os principais méritos deste álbum – junta-se Ed Repka, artista icónico de um traço próprio que viria a aprimorar mais tarde e um engenheiro de som que dava pelo nome de… Terry Date. Personagens de uma história que faz parte da história do metal americano. E um disco que consta do santuário dos mais veneráveis.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

TRÊS SOLDOS POR UM RIFF

Talvez por ter nutrido sempre muito mais fascínio pelas letras que pelos números, causou-me sempre muita urticária a incontornável troca comercial que tem de existir entre artista e consumidor. Entre disco e ouvinte, entre concerto e público, entre ídolo e fã. Numa perspectiva muito primária e idílica, a música como nobre forma de arte, não deveria estar sujeita à perversão que advém da convivência entre dinheiro e talento. Mas não há volta a dar. Da forma como uma sociedade ocidental está institucionalizada e globalizada, dependemos todos de tudo e, mais que nunca, o prazer paga-se; algo tão ordinário como satisfazer os sentidos por via de som ou imagem, tem a sua factura e, quase sempre, pesada. Mais que a própria música, até.

Bem sei que se trata de uma visão utópica, mas a arte deveria ser uma medalha sem reverso pejorativo. Esculpida em ambas as faces com o rigor da criatividade pura, com a beleza da inspiração honesta, com o desafogo de não ser uma obra sujeita a altas ou baixas contrapartidas. O processo criativo nada tem a ver com isso. Massa encefálica e sangue quente nada têm a ver com níquel, são matérias molecularmente diferentes. Quer dizer… à partida. Criar está entre as faculdades que hão de mais puro e precioso em homens e mulheres. Em princípio, seriam incomportáveis com a lasciva promiscuidade que uma troca comercial envolve. E no fim, também, na minha opinião. Imagino que desde o começo dos tempos, a primeira melodia soprada ou a primeira peça do primeiro artesão tenham sido, de alguma forma, pagos. Nem que seja só pelo facto de aquele que atinge a condição de artista, receber de imediato o estatuto de credor moral. No entanto, a evolução que essa relação emissor/receptor veio a tomar até aos nossos dias é qualquer coisa de desconcertante. Mais que uma doutrina criativa a cumprir, há hoje uma economia subjugadora, esclavagista de princípios básicos e que, em muitos casos, faz pautas musicais trocarem-se por folhas quadriculadas de equações milionárias.

Hoje, dificilmente um músico ou banda não têm em atenção a reacção que a sua produção possa ter nos ditos receptores. O público em geral, ou específico, no entendimento de cada um. Logo, a matéria que geram não está imune a uma série de influências externas à corrente criativa em estado puro. O sempre presente factor financeiro subverte aquilo que, à partida, até poderia ser etéreo, mesmo que se façam os devidos esforços para que cada um se abstraia dele. O próprio propósito de qualidade, em si, é uma cedência do criador, uma vez que a competição pela sobrevivência a isso obriga. Mas como todos sabemos, há excepções. Talvez porque as fontes de rendimento para a tal sobrevivência do “criador” no tal mundo globalizado, não derivem da música. Além disso, são muitos os agentes intermediários entre produtor e consumidor, inflacionando de forma ainda mais desmesurada aquilo que, suposta e idilicamente, não se deveria coadunar com uma contrapartida monetária. Os bons estúdios são caros, as boas editoras são açambarcadoras, os bons concertos pagam-se bem, a boa música faz-se com bons instrumentos. Regra geral. Porque podem sempre crescer honrosas excepções com “inferiores” condições.

Sei que até para concordarmos no ponto de vista dissertado aqui, este mês, temos ambos – eu e tu – de assumir uma contradição: os €2.50 que nos separam como emissor e receptor. Mas ambos concordamos que é justo. Assim como os €12 a pagar por aquele CD que bem pode vir a ser o álbum do ano ou os €15 por aquele concerto que dificilmente deixará de nos encantar a memória. Justo porque estamos em 2010, em Portugal, e a música de que mais gostamos, é das coisas que mais nos preenche.

Ainda que chamar antagónica a qualquer relação entre arte e cifrões, não seja um eufemismo.

TP II: CORONER - No More Color

As recentes notícias em torno desta importante banda suíça exercem quase uma relação causa/efeito para voltarmos e descobrir a sua discografia. Os Coroner têm um concerto de reunião agendado para o Hellfest 2011 e o guitarrista Tommy Vetterli não descarta a gravação de algo no futuro o que, só por si, já pede que vasculhemos por aqui, a nossa arca de tesourinhos. Não fosse esta a tal importante banda, mas algo underrated porque o seu status não é hoje totalmente consentâneo com o valor dos seus trabalhos, nem com a influência que incidiram a correntes subsequentes, mesmo sem se ter dado por isso.

Falamos daquilo a que começou por se chamar thrash metal técnico, mas cujas ramificações extremas e progressivas são bastas e, cada trabalho do trio, comporta múltiplos pólos de interesse. «No More Color» é o disco que talvez os condense como banda, uma vez que é neste terceiro longa-duração que elevam ao nível de classe, a chama underground que mantiveram durante «R.I.P.» e «Punishment For Decadence», induzindo-lhe uma inteligência experimental, inequivocamente, avançada para a época. Claro que o seguinte «Mental Vortex», com superior produção e maturação de ideias, talvez seja o verdadeiro work of art do som Coroner, mas é neste momento de 1989 que se denota melhor o odor a génio genuíno, se quisermos.

O ritmo tribal e riff com que «Die By My Hand» principia é arrepiante (ou é mais agora, por se escutar duas décadas depois), assim como o primeiro dos hipnóticos solos de Tommy T. Baron (Vetterli, mais tarde, nos Kreator) neste álbum. Falamos de uma altura em que os músicos vincavam individualidade e, reduzida a três elementos, dá para adivinhar o impacto de cada um nestes 35 minutos. O guitarrista é, comummente, distinguido como a personna principal dos Coroner, mas o facto é que o frontman Ron Royce também revela imenso carisma e tem a cargo dois papéis muito bem desempenhados neste registo: como vocalista e como exímio baixista. Na verdade, até lembra um pouco a imagem (e voz, a espaços) de Tom G. Warrior, não houvesse aqui uma certa ligação aos Celtic Frost. Alguns membros dos Coroner começaram por ser roadies da vizinha banda de Zurique e Tom foi mesmo o vocalista na demo-tape de estreia «Death Cult» sem, no entanto, ter feito parte da banda. Podemos aqui observar que ambos os grupos não estão assim tão distantes num tema como «Mistress Of Deception», embora cedo o trio de T. Baron/Royce/Marquis Marky tenha desenvolvido uma veia própria de thrash obscuro.

«No More Color» foi o álbum que trouxe outras cores à banda que já detinha alguma reputação na altura; só assim poderia surgir uma peça como «Last Entertainment», um sublime fecho de álbum que ainda hoje deve (ou devia) figurar entre os instrumentais mais extraordinários do mundo metal. Antes disso, somos intoxicados pelo inebriante andamento thrash metal de «Why It Hurts» ou podemos render-nos completamente aos encantos de «Read My Scars», incluindo mais um notável exercício de Tommy Vetterli. Sem referência particular não pode ficar ainda uma faixa como «No Need To Be Human», um daqueles refrões cuja atractividade está, justamente, na sua rudeza. Um must de final dos anos ’80.

Durante os seus dez anos de existência, os Coroner deixaram marca pelo período de muita criatividade concentrada, ao longo de seis álbuns de qualidade, isto se não contarmos com «Coroner» de 1996 que foi uma colecção de temas novos com antigos e algumas remisturas. Pelos vistos, o veredicto do médico legista não é absoluto, o que nos deixa a palpitar por futuras actuações e eventual música nova do trio de Zurique. Até lá, há que redescobrir esta pérola.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

ASSASSINA VESTIDA DE CARTÃO

Quero acreditar que sim. Quero acreditar que é um dia como outro qualquer. Desço as escadas e mergulho na neblina que ainda pairava no final desta manhã. A meio deste Outono; no final de muito encanto que outrora imperava… no final de contas.

Abro a caixa do correio e lá estava ela. Pálida e meio contorcida, a encomenda que havia pedido, dias antes pela internet. Apesar do aspecto sisudo com que me encarou nesta manhã, sabia que a sua personalidade era tudo menos áspera para comigo, brotando vida e boa disposição, mal o laser lhe lesse a sina. E assim foi. Passados os seis ou sete minutos que mediaram uma apressada escalada de degraus invisíveis. Aí, tive apenas olhos e tempo para as cores do livreto, para o cheiro da tinta, para as curvas daquele rectângulo. Tal qual vitriólica experiência de sensualidade. No entanto, representava. Fingia que a caixa de correio era a loja por onde, invariavelmente, passava todas as semanas. Dantes. Quando não havia uma torrente de promíscuas partilhas que derrubassem a platónica excitação que mantinha com o “próximo” álbum daquela banda, quando não havia um MP3 armado em oferecido a enviar-me consecutivos e-mails para o “sacar”, quando várias músicas (e logo em grupo) não se prostravam nuas na minha frente, quais rameiras dadas, na forma de streamings grátis.

Pois. Mas a mim, sabe-me melhor a conquista. O encontro combinado. Aí mesmo, na primeira porta após a esquina. Dantes entrava e trocávamos olhares. Inerte mas dona do seu espaço (e consciente do seu valor), observava-me a cortejar outras rodelas da sua prateleira e de toda a loja em volta. Aproximava-me e queria tocar-lhe. Queria fazer-lhe o que não faço com as suas sucessoras discóides nas lojas virtuais de hoje. Queria palpá-la. E podia. Revirava-a, tirava-lhe as medidas de alto a baixo, lia o que tinha escrito para mim.

Esta manhã foi ela que veio ter comigo. Em vez dos 1800 metros que costumava palmilhar para saber quais e quantas parecidas com ela o mercado estava a editar, limitei-me a descer 8 degraus para a receber. Já escolhida e até mais barata, resultado da pesquisa que fiz uns dias antes, à distância de uns cliques. No fundo, ela é a mesma. A mesma pele de celofane reluzente, o mesmo odor perfumado, a mesma elegância de curvas e orifícios. Claro, menos imponente em volúpia e até em som que a sua antecessora de vinil, mas isso levar-nos-ia a outras apaixonantes tertúlias. Estou satisfeito com a companhia que me tem feito esta tarde. Mas sinto um amargo de culpa no estômago. Por um lado, sinto-me mal por não saber bem ao certo, quem são afinal, estes seus pais adoptivos que funcionam muito bem a enviar me cartas, mas será que cumprem todos os requisitos éticos para com os artistas que estão por trás da sua concepção?

Afinal, este não é um dia como outro qualquer. Foi hoje que adquiri a minha primeira pérola pela internet. Cedi aos encantos de uma sereia murmurante da música que gosto. Tão bela quanto prática no processo, tão económica quanto fiável, deixa-me ainda assim triste, pois fere muito do lirismo que pode estar por detrás da simples aquisição de um CD. Fogosa mas perigosa. É que foi tal a tranquilidade com que este relacionamento decorreu, que tenciono repetir. Prevejo enveredar por sucessivos episódios de infidelidade para com amores antigos que não encontro em espaço físico. Mas não é por isso que vou deixar de visitar esses haréns de arte espalhados um pouco por todo o lado... Onde me deixo enlevar por capas que até nem conheço, seja pelo simples gozo carnal de “apostar” naquele assomo momentâneo de curiosidade. Seja pelo acto muito mais romântico, a todos os níveis, que é o de comprar uma raridade destas in loco. E tomá-la, logo ali, nos braços.

sábado, 23 de outubro de 2010

TP I: WATCHTOWER - Control And Resistance

Antes de o metal progressivo ser comummente tido como tal, existiam movimentações artísticas que participaram nas fundações daquilo que hoje é consumido como música complexa no espectro do som pesado; aquilo que sugeria, na altura, sub-denominações ao metal técnico, se quisermos. Entre esses títulos epitomais de uma urgência tão latente (assim como hoje) em purgar experimentação através de escalas pouco ou nada usuais e, ainda menos, imediatas está «Control And Resistance», o segundo álbum dos norte-americanos Watchtower.

Na base da criação do quarteto do Texas estavam, afinal, as mesmas influências de inúmeras bandas que, na década de ’80, viam um enorme desafio na convergência de dois vectores principais: a força proveniente da NWOBHM com o adorno de sagacidade motivado por discos de Rush ou King Crimson. Claro que a emergente cena thrash metal injectou adicionais doses de energia aos "revolucionários" da altura e é esse pote de talento que começa por fervilhar em 1985 para os Watchtower, na estreia «Energetic Disassembly». No entanto, o registo referencial do grupo de Austin é o consequente (e último, até ao momento), até porque comporta mais quatro anos de experiência acumulada. Período, de resto, marcado por alguma instabilidade interna que lhes viria a alterar metade da formação antes da gravação de «Control And Resistance». Nada que tenha feito perigar a excelência desta aposta da germânica Noise, depois de um primeiro disco lançado em nome próprio. Ainda que Alan Tecchio, o vocalista, só tenha conhecido os restantes companheiros poucos meses antes...

Os carismáticos agudos daquele que hoje encarna outros dois regressos – Non-Fiction e Hades – estão universalmente ligados à excelência do legado Watchtower mas, a verdade, é que Tecchio pouco tempo se manteve na banda, cujo microfone do passado (e do futuro) pertence a Jason McMaster. Falamos de uma banda que é predominantemente reconhecida pelos seus dotes instrumentais mas, também nesse departamento, o segundo LP é uma manifestação de alteza vocal. Rick Colaluca e Doug Keyser compõem a incólume secção rítmica dos Watchtower, garantia do superior grau técnico desta entidade que, no segundo trabalho, absorve os talentos de um guitarrista como Ron Jarzombek. Nos anos subsequentes foi o membro mais activo, erguendo projectos como Gordian Knot, Blotted Science e, sobretudo, Spastik Ink, que em certa medida, pegou nesta fase de Watchtower.

Hoje, a banda está de volta com o vocalista original e «Mathematics» é álbum na calha para este ano. Razões de celebração, tratando-se de um daqueles nomes ainda nestes dias recordado (ou descoberto) por muito boa gente que se sente impulsionada a criar melodias de peso intrincado e no qual assenta com toda a propriedade aquele chavão de terem estado "à frente, no seu tempo". Foi por isso que, este mês, recuámos mais de vinte anos para encontrarmos estruturas que não estão assim tão deslocadas da ambiciosa produção presente como os agressivos contra-tempos de «Mayday In Kiev» ou a secção intermédia de «The Fall Of Reson». Ao longo de todo o disco, o slap de Keyser rubrica uma das mais-valias dos Watchtower como grupo anti-banal que, a par dos riffs alienígenas de Jarzombek, dão uma pequena ideia do organizado caos que o colectivo instaura nestes 43 minutos de magnificência. E porque as letras não são aqui simples guias literárias para um fim técnico, há muita consciência política e até intervenção nos textos de «Control And Resistance» como, desde logo, o tema inicial «Instruments Of Random Murder» bem ilustra.

Complexo, mas suficientemente atractivo para se ter tornado num dos álbuns mais influentes do género. Ainda que muitos nem dêem conta disso.