terça-feira, 11 de janeiro de 2011

POR MAL DOS PECADOS DELES – Parte I

Não consigo manter a indiferença. Por cada nova notícia de um atentado no Iraque, é como se fosse a primeira vez. Afinal, aqueles 47 que morreram hoje e os 30 e tal que ficaram amputados não são dos mesmos 33 mil que deixaram de respirar desde Maio de 2003. Nem são dos mesmos que, provavelmente amanhã, depois de amanhã, vão deixar de bocejar ao acordar para um novo dia… mais ou menos cinzento, com mais ou menos ataques. Nem são dos mesmos que se espetaram cobarde e criminalmente contra torres de Manhattan, mas isso levar-nos-ia a outras dissertações. E para quê? Porquê? Faço uma ideia de porquê e também sei que em qualquer guerra – neste caso invasão, com consequente pedante táctica ocidental do divide and conquer perante xiitas e sunitas – as baixas são incontornáveis. Ainda que civis. Hoje na Idade do Desrespeito, tudo se aceita; é banal lidarmos com a morte. Dos outros, claro.

Perpétuos, os vergonhosos conflitos armados e presente, a actual discussão em torno do referendo sobre a despenalização do aborto, são dois temas que têm acicatado o meu asco por aquilo que mais desprezo: a religião. Começa a ser um lugar comum dizê-lo (talvez por ser uma verdade tão dura quanto crua) mas a religião é realmente o maior dos males deste mundo. O tumor que corrompe consciências, que anula personalidades, que fomenta aquilo que mais instabilidade traz ao decurso natural da vida, a partidarite. Está na natureza do homem aliar-se em grupo e procurar referências com outros semelhantes, mas quando se chega ao ponto do “eu mato-te para não me matares a mim porque não somos do mesmo clube” penso que quem ganha essa luta tribal são mesmo os animais. Por inerência. Está na natureza de alguns homens, ou mulheres. Talvez não na tua. Eu, por exemplo, nunca necessitei de qualquer tipo de espiritualidade mono ou politeísta e acredito mais na celulose onde assenta a tinta que percorres agora com os teus olhos, que em qualquer deus ou outra identidade intangível criada pelo homem para satisfazer os seus recorrentes caprichos de personificar o impersonificável. E isso faz de mim um infame? Um niilista? Um… inculto? Depende da perspectiva de como e de quem receber uma afirmação dessas.

Sabem, estou saturado deste mundo-do-faz-de-conta em que o homo modernus, chamemos-lhe assim, já com 200 000 anos “nas pernas”, se continua a comportar como uma criança, recorrendo sempre que necessário à sua pseudo crença no pai natal, chame-se ele Allah, Deus ou Shiva. Embora muitos crentes não respeitem a fé do que lhe é opositor, levando-o muitas vezes a apostasias forçadas [ou pura e simplesmente, eliminando-o], eu respeito a doutrina como cada um rege a sua vida, mas tenho o direito de a achar desnecessária. Prestar vassalagem mental a tigres de papel é um desperdício de energias. E causar-me-ia mais inconformismo se não soubesse que, por detrás dessa crença, está realmente um cariz pseudo. O homem é religioso porque é um preguiçoso ganancioso. Se exceptuarmos o Budismo e outras doutrinas orientais de moderada aniquilação do ser único, quase todos os cultos de larga escala têm por base um desígnio primeiro para o próprio indivíduo – o comodismo; a dedicação espiritual de uma vida em troca do cheque de eterna paz entregue no leito da morte. E o poder, não necessariamente material, mas de autoridade, a que fomenta a tal clubite no campeonato das cruzes e dos crescentes, vermelhos de sangue e de idiotice.

Para o metal, o imaginário da religião tem sido um terreno de fértil inspiração. Mas por muito hereges que as bandas ou os seus fãs sejam e por meia dúzia de igrejas que tenham sido incendiadas, anti-cristianismo tem sido sinónimo de anti-hipocrisia, anti-ignorância, anti-letargia. Este é um solo criativo tolerante ao ponto de acolher correntes como o white metal. Ao contrário dos mísseis e dos discursos de gente grande que deveria ter juízo, letras de músicas, capas e logótipos, ou demonstrações ímpias em palco não têm efeitos colaterais no respeito e liberdades de cada um. Pudesse existir uma banda com Adolph Hitler, Mao Tse-Tung, Josef Stalin e… Goerge W. Bush a expurgarem o seu prepotente ódio através de Marshalls e Carvins, e não teríamos razão para tanta indignação no mundo real.

É dessa tríade entre música, religião e sociedade que se farão aqui os próximos Deseufemismos. Pecando sem piedade, se preciso for, claro está.

Sin-Cronista © 2006

TP V: BLACKFOOT - Marauder

Embora sejam, de génese, uma banda southern rock, os Blackfoot atingiram o período mais meritório durante a sua fase mais hard rock. Esse é um dos enigmas por trás do veterano grupo de Jacksonville. O outro, reside no facto de terem sido mais bem sucedidos nesta altura na Europa que nos Estados Unidos, ainda para mais, encorpando alguma da iconografia musical americana mais típica. Residirá, justamente aí, o charme sedutor para ouvidos rock vibrantes com o el dorado setentista, coisa que já não era novidade para um auditório que tinha uns Lynyrd Skynyrd e outros que tais? Talvez.

Com quatro álbuns gravados, a banda já tinha o seu espaço nos States sulistas, mas a verdade é que, quando em 1981 é editado “Marauder”, não foi criado um especial impacto. E, se cá por terras europeias, o quinto disco dos Blackfoot gerava focos de entusiasmo e descoberta, era também o tempo de todos os booms e o “disco da águia” acaba por se diluir no tempo. Sem nunca ser esquecido, redescoberto entre o pó dos vinis mais preciosos, ou por este ou aquele músico que aí fundou raízes inspirativas. Tal como hoje, quando o rock duro sem tempo se permite vergar à teimosa memória dos primeiros dias. «Marauder» culmina o período mais forte e inspirado dos Blackfoot, depois de “Strikes” de 1979 e de “Tomcattin’” de 1980. Ao réptil e ao felino, sucede a ave de rapina na imponência orgânica simbolizada na imagética da altura, talvez não a mais genial em termos de artwork, mas de excelência artística, mal as espiras começam a rodopiar. Exactamente como sucede em “Good Morning”. Prenúncio de algo mágico, ao longe a distorção de Ricky Medlocke dá as boas vindas a uns Blackfoot no auge da sua sensatez, num dos temas mais ritmados do grupo, ainda hoje, enfatizado numa das suas peças mais reconhecíveis. No lado oposto da energia está “Diary Of A Workingman”, canção de serenas melancolias acústicas, para desembocar em intensidades que nos transportam para uma qualquer América proletária do século passado.

É destas alternâncias de estados de espírito e ambivalência de cores naturais que se compõe um álbum como “Marauder”, tal qual representação da paleta de possibilidades na Florida, onde o sangue índio sempre correu. Aqui é bem latejante, com três nativos americanos como Medlocke, o baixista Greg T. Walker e o baterista Jackson Spires, este último, falecido em 2005, vítima de aneurisma. Neto de Shorty Medlocke – que ouvimos em registo true redneck no início de “Rattlesnake Rock ‘N’ Roller” –, figura referencial no bluegrass de há muitas décadas, Ricky Medlocke sempre fora a alma dos Blackfoot, mas a partir do momento em que o line-up original se desintegraria (1985), o grupo deixa de expelir aquele elan especial, ainda que se mantenha hoje activo, com Walker a hastear a bandeira de uma banda fundada há quase 40 anos. Oscilando entre os momentos mais calmos e a impulsividade própria do Sul, “Marauder” é daqueles discos que amadurecem bem com o tempo, tendo em “Searchin’” outra pérola de dramatismo contemplativo e em “Fire Of The Dragon”, novo fogo ardente, da chama que uma banda destas pode ainda hoje manter, se estivermos dispostos a uma boa sessão de southern rock.

Daqui para a frente já nada foi igual. Ken Hensley dos Uriah Heep entra para os teclados e o consequente álbum “Siogo” assinalaria uma demarcação para sonoridades mais radio-friendly. É, portanto, a meio da carreira que está a virtude, com “Marauder” a fazer os Blackfoot soarem hoje a um autêntico “pata negra”, entre o que de melhor se fez no estilo, no início dos anos ’80.