quinta-feira, 4 de novembro de 2010

ASSASSINA VESTIDA DE CARTÃO

Quero acreditar que sim. Quero acreditar que é um dia como outro qualquer. Desço as escadas e mergulho na neblina que ainda pairava no final desta manhã. A meio deste Outono; no final de muito encanto que outrora imperava… no final de contas.

Abro a caixa do correio e lá estava ela. Pálida e meio contorcida, a encomenda que havia pedido, dias antes pela internet. Apesar do aspecto sisudo com que me encarou nesta manhã, sabia que a sua personalidade era tudo menos áspera para comigo, brotando vida e boa disposição, mal o laser lhe lesse a sina. E assim foi. Passados os seis ou sete minutos que mediaram uma apressada escalada de degraus invisíveis. Aí, tive apenas olhos e tempo para as cores do livreto, para o cheiro da tinta, para as curvas daquele rectângulo. Tal qual vitriólica experiência de sensualidade. No entanto, representava. Fingia que a caixa de correio era a loja por onde, invariavelmente, passava todas as semanas. Dantes. Quando não havia uma torrente de promíscuas partilhas que derrubassem a platónica excitação que mantinha com o “próximo” álbum daquela banda, quando não havia um MP3 armado em oferecido a enviar-me consecutivos e-mails para o “sacar”, quando várias músicas (e logo em grupo) não se prostravam nuas na minha frente, quais rameiras dadas, na forma de streamings grátis.

Pois. Mas a mim, sabe-me melhor a conquista. O encontro combinado. Aí mesmo, na primeira porta após a esquina. Dantes entrava e trocávamos olhares. Inerte mas dona do seu espaço (e consciente do seu valor), observava-me a cortejar outras rodelas da sua prateleira e de toda a loja em volta. Aproximava-me e queria tocar-lhe. Queria fazer-lhe o que não faço com as suas sucessoras discóides nas lojas virtuais de hoje. Queria palpá-la. E podia. Revirava-a, tirava-lhe as medidas de alto a baixo, lia o que tinha escrito para mim.

Esta manhã foi ela que veio ter comigo. Em vez dos 1800 metros que costumava palmilhar para saber quais e quantas parecidas com ela o mercado estava a editar, limitei-me a descer 8 degraus para a receber. Já escolhida e até mais barata, resultado da pesquisa que fiz uns dias antes, à distância de uns cliques. No fundo, ela é a mesma. A mesma pele de celofane reluzente, o mesmo odor perfumado, a mesma elegância de curvas e orifícios. Claro, menos imponente em volúpia e até em som que a sua antecessora de vinil, mas isso levar-nos-ia a outras apaixonantes tertúlias. Estou satisfeito com a companhia que me tem feito esta tarde. Mas sinto um amargo de culpa no estômago. Por um lado, sinto-me mal por não saber bem ao certo, quem são afinal, estes seus pais adoptivos que funcionam muito bem a enviar me cartas, mas será que cumprem todos os requisitos éticos para com os artistas que estão por trás da sua concepção?

Afinal, este não é um dia como outro qualquer. Foi hoje que adquiri a minha primeira pérola pela internet. Cedi aos encantos de uma sereia murmurante da música que gosto. Tão bela quanto prática no processo, tão económica quanto fiável, deixa-me ainda assim triste, pois fere muito do lirismo que pode estar por detrás da simples aquisição de um CD. Fogosa mas perigosa. É que foi tal a tranquilidade com que este relacionamento decorreu, que tenciono repetir. Prevejo enveredar por sucessivos episódios de infidelidade para com amores antigos que não encontro em espaço físico. Mas não é por isso que vou deixar de visitar esses haréns de arte espalhados um pouco por todo o lado... Onde me deixo enlevar por capas que até nem conheço, seja pelo simples gozo carnal de “apostar” naquele assomo momentâneo de curiosidade. Seja pelo acto muito mais romântico, a todos os níveis, que é o de comprar uma raridade destas in loco. E tomá-la, logo ali, nos braços.

Sem comentários:

Enviar um comentário