sexta-feira, 12 de novembro de 2010

TRÊS SOLDOS POR UM RIFF

Talvez por ter nutrido sempre muito mais fascínio pelas letras que pelos números, causou-me sempre muita urticária a incontornável troca comercial que tem de existir entre artista e consumidor. Entre disco e ouvinte, entre concerto e público, entre ídolo e fã. Numa perspectiva muito primária e idílica, a música como nobre forma de arte, não deveria estar sujeita à perversão que advém da convivência entre dinheiro e talento. Mas não há volta a dar. Da forma como uma sociedade ocidental está institucionalizada e globalizada, dependemos todos de tudo e, mais que nunca, o prazer paga-se; algo tão ordinário como satisfazer os sentidos por via de som ou imagem, tem a sua factura e, quase sempre, pesada. Mais que a própria música, até.

Bem sei que se trata de uma visão utópica, mas a arte deveria ser uma medalha sem reverso pejorativo. Esculpida em ambas as faces com o rigor da criatividade pura, com a beleza da inspiração honesta, com o desafogo de não ser uma obra sujeita a altas ou baixas contrapartidas. O processo criativo nada tem a ver com isso. Massa encefálica e sangue quente nada têm a ver com níquel, são matérias molecularmente diferentes. Quer dizer… à partida. Criar está entre as faculdades que hão de mais puro e precioso em homens e mulheres. Em princípio, seriam incomportáveis com a lasciva promiscuidade que uma troca comercial envolve. E no fim, também, na minha opinião. Imagino que desde o começo dos tempos, a primeira melodia soprada ou a primeira peça do primeiro artesão tenham sido, de alguma forma, pagos. Nem que seja só pelo facto de aquele que atinge a condição de artista, receber de imediato o estatuto de credor moral. No entanto, a evolução que essa relação emissor/receptor veio a tomar até aos nossos dias é qualquer coisa de desconcertante. Mais que uma doutrina criativa a cumprir, há hoje uma economia subjugadora, esclavagista de princípios básicos e que, em muitos casos, faz pautas musicais trocarem-se por folhas quadriculadas de equações milionárias.

Hoje, dificilmente um músico ou banda não têm em atenção a reacção que a sua produção possa ter nos ditos receptores. O público em geral, ou específico, no entendimento de cada um. Logo, a matéria que geram não está imune a uma série de influências externas à corrente criativa em estado puro. O sempre presente factor financeiro subverte aquilo que, à partida, até poderia ser etéreo, mesmo que se façam os devidos esforços para que cada um se abstraia dele. O próprio propósito de qualidade, em si, é uma cedência do criador, uma vez que a competição pela sobrevivência a isso obriga. Mas como todos sabemos, há excepções. Talvez porque as fontes de rendimento para a tal sobrevivência do “criador” no tal mundo globalizado, não derivem da música. Além disso, são muitos os agentes intermediários entre produtor e consumidor, inflacionando de forma ainda mais desmesurada aquilo que, suposta e idilicamente, não se deveria coadunar com uma contrapartida monetária. Os bons estúdios são caros, as boas editoras são açambarcadoras, os bons concertos pagam-se bem, a boa música faz-se com bons instrumentos. Regra geral. Porque podem sempre crescer honrosas excepções com “inferiores” condições.

Sei que até para concordarmos no ponto de vista dissertado aqui, este mês, temos ambos – eu e tu – de assumir uma contradição: os €2.50 que nos separam como emissor e receptor. Mas ambos concordamos que é justo. Assim como os €12 a pagar por aquele CD que bem pode vir a ser o álbum do ano ou os €15 por aquele concerto que dificilmente deixará de nos encantar a memória. Justo porque estamos em 2010, em Portugal, e a música de que mais gostamos, é das coisas que mais nos preenche.

Ainda que chamar antagónica a qualquer relação entre arte e cifrões, não seja um eufemismo.

2 comentários:

  1. Reflexão brilhantemente pertinente, como é hábito, mas o que me conquistou definitivamente foi mesmo o uso do termo 'açambarcadoras'. You rock.

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  2. Yap, esse termo também me "açambarcou" :)
    Obg! :) \m/

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